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O Vale do Rio Doce na literatura

por Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola (*)

Existem dois romances cujas narrativas contam a história de famílias que deixaram a terra de origem para se estabelecer nas “matas do rio Doce”. O primeiro é o romance “Canaã”, de Graça Aranha (1896-1931), publicado em 1902. Na história da literatura brasileira, esse romance tem uma enorme importância, pois é considerado uma obra pré-modernista, que, inaugurado o naturalismo brasileiro, promove a renovação temática e introduz o regionalismo. A obra conta a saga de imigrantes alemães que migram para as matas do rio Doce. O segundo romance é “Fome em Canaã”, do escritor mineiro Agripa Vasconcelos (1896-1969), publicado em 1966. Conciliando história e ficção histórica, “Fome em Canaã” conta o drama vivido por uma família de fazendeiro que decidiu abandonar Montes Claros, no Norte de Minas, e migrar para a “mata do rio Doce”, estabelecendo-se em Figueira (Governador Valadares). Vou dedicar atenção a essa segunda obra, mas, primeiro, um pouco sobre o autor.

O escritor mineiro concluiu o curso de Medicina em 1920, no Rio de Janeiro, e exerceu a profissão em Sete Lagoas, Governador Valadares, Ibiá, Caratinga, Patos de Minas e Belo Horizonte, antes de ingressar no Banco do Brasil, em 1950. Como escritor, publicou uma série de seis romances de destaque. Para cada um o autor identifica o que ele chama de ciclo: “Fome em Canaã” é o romance do ciclo do latifúndio. Duas de suas obras foram adaptadas para novela: “A vida em flor de Dona Beja” (Dona Beja), estrelada por Maitê Proença (1986); e “Chica-Que-Manda” (Xica da Silva), estrelada por Taís Araujo (2005). No romance “Fome em Canaã”, a “mata do rio Doce” aparece como terra da promissão e, ao mesmo tempo, essa ideia é contraditada. A própria terra é o personagem central que envolve todos os demais personagens e destrói seus sonhos, compondo a história sintetizada no título.

Fome em Canaã conta a saga de Vicente, um grande latifundiário do Norte de Minas Gerais que se vê obrigado a deixar sua terra para proteger o filho, cuja saúde estava debilita em razão do problema que enfrenta no casamento. A primeira parte do romance se passa no município de São Vicente, próximo a São Romão, onde Vicente, com a ajuda dos seus irmãos Julião e Calango, comandava a Casa Branca, sede de um enorme latifúndio. Vicente decide migrar para a região da “Mata”, nome pelo qual denominavam o Vale do Rio Doce. Ele manda seus dois irmãos escolherem uma fazenda: “Você levará carta para o Milwars, meu colega de Faculdade”. Nessa primeira referência, já se percebe que o romance de Agripa de Vasconcelos está baseado em dados, informações e no próprio conhecimento de quem viveu em Governador Valadares, na época da Figueira. Só para lembrar: quem era de Baguari e se formou em Ouro Preto foi Otávio Soares.  

A trama simples é emoldurada pelos múltiplos dramas que compõem o mundo vivido no ambiente de fronteira, no qual a opressão do meio governa os dias, com suas doenças, tensões, violências e morte. O meio social ainda em formação não oferecia coesão e ordem social que moldassem os diferentes grupos e indivíduos que habitavam a “Mata”. O romance se passa no final da década de 1920, ainda no tempo da frente de expansão, cuja paisagem é capturada pelo romance para compor um cenário rústico, anterior às grandes transformações das três décadas seguintes. Os personagens, os lugares e as narrativas têm relações com atores e circunstâncias históricas verídicas. Um exemplo que pode ser mencionado é do personagem Doutor Schiller, que no romance é um engenheiro alemão responsável pela construção da estrada de rodagem. A composição do personagem, com seu terno branco, relógio de bolso, cavanhaque e ideias, expressas nos diálogos, indica ser o engenheiro alemão Guilherme Giesbrecht, que chefiou as obras de abertura da primeira estrada de rodagem na região.

Julião e Calango, encarregados da missão, deixam o Norte de Minas em direção à Mata do Rio Doce, onde podiam chegar de trem de ferro até o distrito de São José da Lagoa (atual cidade de Nova Era), a cerca de 140 quilômetros a leste de Belo Horizonte. O objetivo era Figueira (Governador Valadares), porém, primeiro tinham que chegar a Cachoeira Escura, ponta dos trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas – EFVM. De São José da Lagoa até Antônio Dias viajaram em montaria por caminhos margeando o rio Piracicaba, no interior da mata. Depois seguiram a pé até a barra do rio Doce, prosseguindo até a estação ferroviária que fica às margens do rio Doce, logo abaixo da cachoeira que lhe dá o nome. Ao chegarem à estação ferroviária de Cachoeira Escura, Julião e Calango sabiam que primeiro teriam que parar na estação de Baguari, antes de prosseguir para Figueira, pois levavam a carta solicitando a ajuda de Milwars. As estações de Cachoeira Escura e de Figueira ofereceram o elemento para o primeiro discurso de contraste entre o Norte de Minas e a mata do rio Doce. O tamanho das toras aguardando para serem embarcadas no trem, muito diferente das árvores do cerrado, mais do que o assombro, dava uma contraposição entre a qualidade das terras e, principalmente, indicava que estavam numa terra de oportunidades. Nos próximos artigos vamos continuar a escrever sobre o romance “Fome em Canaã”.   

(*) Professor do Curso de Direito da Univale
Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT
Doutor em História pela USP

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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