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História do Rio Doce – VII

Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola (*)

Um assunto que sempre volta a ser debatido, nesses últimos 200 anos, é o projeto de usar o rio Doce como hidrovia de ligação de Minas Gerais com o mar. Essa questão esteve no centro dos debates, em 1925. Nesse ano foi criada a Companhia Brasileira do Rio Doce, que se formou pela associação de capitalistas ingleses e brasileiros. A finalidade para a qual a companhia ganhou o monopólio foi a navegação entre o Rio de Janeiro e a foz do rio Doce, por todo seu curso, de seus confluentes, com o direito sobre as terras nas duas margens, para a promoção

da colonização e do comércio. O capital de 225 mil libras esterlinas (cerca de 6,7 milhões de reais em valores atuais) foi dividido em 5 mil ações. A direção ficaria em Londres, declarando-se ali os dividendos, que seriam remetidos ao Rio de Janeiro.

A companhia comunicou que iria buscar o apoio dos presidentes das províncias de Minas Gerais e do Espírito Santo (naquele tempo os atuais estados eram denominados de província; no lugar de governador era presidente que governava). O objetivo era convencer os governos de Minas e do Espírito Santo subscreverem ações e, ao mesmo tempo, convencerem seus principais proprietários capitalistas e fazendeiros a fazerem o mesmo. Todavia os diretores da companhia deixavam claro que a empresa seria puramente privada. Eles afirmavam que não haveria qualquer obrigação para o governo e não seria pedido privilégio. Entretanto ressaltavam que depois de se conhecer bem o rio, por seus próprios engenheiros, não estava descartada a possibilidade de buscar entendimento para firmar contratos a respeito dos canais de navegação. Na verdade, no primeiro momento a companhia tinha claro que seria impossível fazer cálculos, pois os lugares eram na maior parte desconhecidos.

A transformação do rio Doce numa hidrovia e a criação da Companhia Brasileira do Rio Doce, cujo controle era inglês, se tornaram a questão política central daquele ano de 1825. Contra esse projeto apoiado pelo poder central se levantou fortemente a oposição dos mineiros, liderados pelo Cônego Francisco Pereira de Santa Apolônia, que foi deputado constituinte eleito por Minas para as Cortes em Lisboa (1821) e influente político nas Minas Gerais. O velho cônego, de 84 anos, não descansou até conseguir a revogação do decreto que autorizava a companhia inglesa a operar. 

Nesse ano de 1825, qual era a real situação do rio Doce e das terras de floresta que ficavam nos sertões intermédios? Esse termo sertões intermédios se referia a toda extensão que ficava entre a região central de Minas e o litoral, formada pelas bacias do rio Doce. Em 1825 estava acelerado o processo de consolidação do controle dos mineiros sobre todas essas terras, do rio Doce e de todos seus afluentes. Uma rede de comunicação foi estabelecida ligando os portos de canoas criados pelas Divisões Militares do Rio Doce, interligando toda a zona florestal. Os militares operavam um serviço de correios que garantia a comunicação entre os quartéis e povoados espalhados na mata, em pontos estratégicos, junto às confluências dos rios e junto às cachoeiras e corredeiras. O presidente de Minas, o Barão de Caeté, determinou ao comandante geral das Divisões Militares do Rio Doce, Guido Thomaz Marlière, acelerar as várias providências em curso para implantação da navegação no rio Doce pelos mineiros. Em 1825 entrou em serviço o quartel de Porto das Canoas, que ficava abaixo da vila de Antônio Dias, no rio Piracicaba, local estratégico de ligação com as zonas povoadas e servidas de estradas. O governo de Minas liberou recursos para serem gastos com a segurança das canoas que faziam o comércio do rio Doce e para equipar os portos.

Com o cancelamento do decreto, ficou aberto o caminho para o governo de Minas promover, a suas custas, a navegação dos rios e o controle do território, que veio a ser definitivamente incorporado à Província de Minas Gerais. O comandante Marlière assumiu a tarefa de concretizar os interesses dos mineiros. Em 1826 criou o quartel do Ramalhete (Virgolândia) para garantir a segurança da navegação do rio Suaçuí Grande, fortalecer a 5ª Divisão Militar, cujo quartel central ficava em Peçanha, e de promover a comunicação daquela zona com a sede da comarca do Serro. Ao Cônego Santa Apolônia, que ocupava a presidência de Minas, Marlière comunica que a ponte sobre o rio Piracicaba, em frente o arraial de Antônio Dias Abaixo, estava pronta, e pede mais recursos com objetivo de acelerar a ocupação das margens dos rios, com povoamento e agricultura. Esse processo de ocupação seguia uma visão estratégica de controle do território. O povoamento era junto às cachoeiras, onde estavam localizados os quartéis, como o de Dom Manoel (atual Governador Valadares). Serviços de juntas de bois e carretas de quatro rodas prestavam apoio à navegação, pois nos trechos que não se podia navegar as canoas e cargas eram retiradas das águas e transportadas pelo caminho paralelo ao rio. Essas benfeitorias fortaleceram a navegação e criaram estímulos para a fixação de novos habitantes, dando origem aos povoados junto as quartéis e portos, que depois se tornaram vilas e hoje são as cidades de nossa região. Naquele tempo, talvez mais que hoje, os mineiros tinham plena consciência dos seus interesses e se recusaram a ficar a reboque do poder central e dos projetos focados apenas nos interesses gerais, sem considerar os verdadeiros interesses de Minas Gerais.

*Professor do Curso de Direito da Univale / Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT / Doutor em História pela USP

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