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Falar (a verdade) é terapêutico

por Dr. Lucas Nápoli (*)

Você já teve a oportunidade de conversar com alguém falando tudo o que lhe vem à cabeça? Não, não se trata de mera sinceridade. Estou me referindo a falar tudo mesmo, sem filtros, incluindo aquelas coisas que podem soar desagradáveis, grosseiras ou mesmo ilógicas, tanto para o seu interlocutor quanto para você. Você já fez essa experiência?

Em nossas conversas habituais com familiares, amigos, colegas etc, não costumamos verbalizar todos os pensamentos que passam pela nossa mente. Via de regra, a gente faz uma seleção desse material, com base nos mais diversos critérios. Se você está lidando com seu chefe no trabalho, por exemplo, provavelmente irá tomar todo o cuidado para não mencionar, que há tempos chegou à conclusão de que ele é um-baita-sovina-ganancioso-que-só-pensa-em-lucrar-e-paga-uma-mixaria-para-os-funcionários. Do mesmo modo, se estiver conversando com seu namorado, é bem provável que não diga para ele que sentiu uma pontinha de atração por um colega de faculdade na última semana.

Nos dois casos, o bom senso recomenda que você mantenha mesmo tais pensamentos ocultos, a não ser que já não se importe com a possibilidade de ser demitida (no primeiro caso) ou de arrumar uma baita discussão com seu namorado (no segundo). O esforço que fazemos para construir uma bela imagem de nós mesmos para o outro, nos leva a estabelecer um filtro de pensamentos a serem verbalizados. Para salvar a relação, sacrificamos a verdade. Na maioria das vezes, tal sacrifício vale a pena. Todavia, há momentos em que a quantidade de coisas que evitamos falar, ou seja, que não deixamos passar pelo filtro, aumenta tanto que começa a nos intoxicar.

Foi isso o que Sigmund Freud descobriu. Sim, Freud, aquele mesmo da nossa coluna anterior, médico neurologista que viveu entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX.

Tratando, por meio da hipnose, pacientes que sofriam de problemas físicos “de fundo emocional” (como se diz hoje em dia), Freud e seu experiente colega Breuer (também apresentado na coluna anterior) descobriram que falar cura. Mas não se trata de qualquer tipo de fala. Não adianta ficar duas horas conversando fiado com um paciente, que ele não vai melhorar. Talvez até piore, dependendo do assunto… A fala terapêutica, a fala que efetivamente cura, é a fala que expressa uma verdade outrora reprimida.

Freud e Breuer observaram que os sintomas físicos daqueles pacientes, tais como paralisias, cegueiras, crises convulsivas, etc, haviam surgido após aquelas pessoas terem empregado muita força, para reprimir dentro de si determinados pensamentos ou lembranças. Esses conteúdos traziam tanta vergonha, culpa ou ansiedade, que aqueles indivíduos tinham receio de verbalizá-los, não só para os outros, mas para si mesmos.

Por outro lado, no momento em que eram hipnotizados e se sentiam livres, para falar tudo o que lhes passava pela cabeça (já que estavam mais ou menos inconscientes), todos aqueles pensamentos e lembranças reprimidas, vinham à tona e eram verbalizados. Resultado: o paciente ficava “milagrosamente” curado. O ato de colocar em palavras, aquilo que havia sido tão fortemente reprimido, no passado, eliminava os sintomas. Uma paciente de Breuer, encantada com a eficácia do tratamento, chamava seus atendimentos com o médico de “talking cure” (cura pela fala) e de “chimney sweeping” (limpeza de chaminé). Com efeito, a moça sentia que o método empregado por Breuer operava uma espécie de purificação de sua alma, outrora, entulhada de memórias e pensamentos difíceis de suportar.

Freud não se considerava um bom hipnotizador e, pouco a pouco, foi percebendo que a hipnose era uma técnica limitada, que não produzia curas definitivas, mas apenas resultados paliativos. No entanto, o médico continuou acreditando que a chave da eficácia, ainda que incompleta, do tratamento que ele e Breuer vinham desenvolvendo, era a verbalização de pensamentos e lembranças reprimidas, e não propriamente a hipnose. Essa era apenas uma ferramenta – e não era das melhores.

Assim, Freud decidiu aperfeiçoar o seu método de trabalho, abandonando a hipnose e, em seu lugar, incluindo uma técnica muito mais simples, que ele a batizou de “associação livre”. Tal procedimento consiste basicamente em pedir que o paciente faça, em estado de vigília, ou seja, consciente, o que ele faria se estivesse hipnotizado. A saber: falar o que lhe vier à cabeça, da forma mais livre e espontânea possível. É a invenção desse novo método de tratamento, baseado na associação livre de pensamentos, que marca o nascimento dessa tal de Psicanálise, sobre a qual venho falando desde a primeira coluna.

Não é fácil falar, conscientemente, tudo o que vem à cabeça. A maioria das pessoas tem muita dificuldade, para abandonar os seus filtros e simplesmente deixar tudo vir à tona. Por que isso acontece? É assunto para outra coluna… Até a próxima!

(*) Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

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