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Entre coelhos e tartarugas

Marcos Santiago (*)

Por esses dias – passageiros – deparei-me com a última versão de um aplicativo que permeia meu dia e, por vezes a noite. Ri, um riso nervoso, de principiante, ou algo parecido. Lutamos uma luta constante para ajustar a dose desses recursos e equipamentos, que agregam a TV, o jornal, o telefone, a poltrona de cinema, o cardápio da mesa, a viagem, o caixa de banco, a escola e o oráculo, a consulta, o projeto e a procissão. O mundo dobrado e empacotado na palma das nossas mãos, dentro de nossas casas, ao alcance de nossa ansiedade.

O tal aplicativo nos permite acelerar a fala que recebemos em mensagem de áudio. Além da voz distorcida e engraçada do emissor, tenho o poder de acelerar o discurso, a bênção, a bronca e o elogio, sem delongas. Falar, quase todo mundo quer. Importante é se expressar. Mais que justo. Outrossim, o ciberespaço virou campo para toda sorte de impropérios e devaneios. Esquecemo-nos de que a natureza nos dotou de dois ouvidos e uma boca.

Em mente, o roteiro grotesco daqueles filmes realistas, nos quais a prostituta (ou profissional do sexo) se joga no tapete, atirando no ventilador a peça íntima, enquanto a música de fundo segue à meia luz:

– É vinte dólar o preço. Se for sem preservativo ou sem máscara é cinquenta. Diz ela.

O indivíduo alerta que o encontro é tão somente para companhia. Ele só quer conversar, ouvir e ser ouvido.

Ela se levanta meio frustrada e puxa a tabela da bolsa:

– Para uma conversa rapidinha, faço pelo dobro do preço. Passa um PIX antes.

O falar engoliu o ouvir. É que ouvir demanda tempo, empatia e, geralmente, doação. O eu moderno quer ter, mas pouco quer dar. Então que seja apressado: acelera-te que tenho mais o que fazer (ou falar)! Quando morreres, ó gajo, envio mensagem de texto, com a logomarca do luto.

Assim, essa outra vida bandida vai nos empurrando, e juntos, vamos nos acotovelando, sem mudar de faixa, de roupa ou de frequência.

Vivenciamos um mundo cada vez mais rápido. Relações cada vez mais largas e mais rasas, alertou, de certa maneira, Augusto Cury. Não apenas o pensamento está excessivamente acelerado. Tudo gira tão veloz que estar à margem de tantas transformações açodadas imprime no currículo vital dos desavisados a pecha de letargia.

Criança que não nasce com os olhos abertos; sei não! Se por um lado temos a síndrome do pensamento acelerado, por outro, temos os sintomáticos da síndrome do pensamento desacelerado, aqueles rebeldes pacatos que, por um ou outro motivo, se perdem no estouro da boiada. Grande parte dos nossos idosos (e não só eles) vivencia essa desvinculação biopsicossocial para com a pressa sagrada, o multitarefismo rasteiro e frígido, onipresente e onisciente, mas impotente, e que desagrega. Os consultórios formam filas de adoecidos, amedrontados, ameaçados, desorientados e em sofrimento. Multiplicam-se os sujeitos eletrificados, agindo tal qual fio desencapado.

Tudo é impaciência. Ser célere é preciso, em várias situações. O problema é a superdosagem, que envenena o corpo e a alma. Casamentos se desfazem em trinta dias. A leitura sem prazer é dinâmica. A ejaculação é cada vez mais precoce e a amizade dura uma campanha presidencial. A música marcante rabisca com giz a calçada, na chuva, e desaparece. O sono vem e se vai, em até quatro horas. Tudo é ponte aérea, com as pessoas minúsculas, vistas ao longe. Próximo! Grita o fast-food. E temos, já não é de hoje, o prazer imediato e efêmero das drogas, impregnadas nas melhores famílias, para exemplificar essa pressa destrutiva e viciante.

Reserve-se um momento, enquanto batuca a música no volante do carro. Observe aquele motoqueiro tresloucado, vez ou outra (e outra, e outra) afugentando o bom senso na correria para entregar a encomenda recém-saída do forno. Pode ser mal avaliado no aplicativo de entregas ou xingado por aquele sujeito dopado do condomínio de alto padrão, esperando a encomenda a quase cinco minutos. No caminho fica um corpo estendido no chão (frio). Quem tem muita pressa é dado a não se demorar nas placas e sinais de pare! Infringir a regra passa de risco para necessidade. Assim se deforma a humanidade.

Obviamente, gostamos (e por vezes precisamos) de respostas e intervenções rápidas, urgentes. Mas jamais podemos fazer erigir um mundo onde tudo e todos vivem apensos da urgência, onde a emergência está em produzir e se comportar just in time. No fim do expediente, você percebe que se passaram setenta anos de maratona, sem se lembrar das nuances e belezas da paisagem e dos queridos que ficaram pelo caminho, sem o seu aceno.

Calma! Faz pausas. A vida não se sustenta em arritmias. “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais (…)” cantam, Almir Sater e Renato Teixeira. Talvez não tenhamos chorado o bastante. A pressa é a inimiga da perfeição, a menos que você seja um trem bala. Deus não fez o mundo em vinte e quatro horas, então respira!


(*) Marcos Santiago – santiagoseven@bol.com.br

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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