[the_ad id="288653"]

Doces Sebastiões

FOTO: Divulgação

Bituca se aposentou dos palcos em 2022 com a “A Última Sessão de Música”, sua turnê derradeira. Mas a gente sabe que o som da plenitude humana desse cara vai ecoar até o fim dos tempos. Gilberto Gil está se despedindo dos palcos com um tour de encerramento em arenas brasileiras — e até em um navio. A turnê “Tempo Rei” celebra as décadas de serviços muito bem prestados à nação. Tanto na música quanto no trato, na delicadeza, na ousadia de testar limites da poesia, do lirismo e do sublime, eles deram shows inesquecíveis.

Juntos, gravaram o álbum “Gil & Milton” no ano 2000. Um disco que parece ter tido uma repercussão menor do que merecia, mas isso talvez seja assunto para um outro texto. Fato é que, entre releituras de clássicos próprios e de outros artistas e canções originais e inéditas, eles lançaram “Sebastian”, que começa assim:

“Sebastian, Sebastião

Diante de tua imagem

Tão castigada e tão bela

Penso na tua cidade

Peço que olhes por ela”

A música foi feita para o Rio, que, segundo relatos, nasceu com o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro — para quem não conhece a história, vale a pena buscar. Milton é nascido na capital fluminense e mineiro de alma e coração. Gil é baiano até a medula, mas fez da cidade maravilhosa a espinha dorsal da sua vida em família e em negócios. Juntos, há 25 anos já pediam alguma ajuda ao santo padroeiro do lugar mais deslumbrante do planeta. Não está fácil nem para a divindade. O Rio segue sendo um encanto a impressionar o mundo, mas permanece na triste rotina de nos desencantar com descasos, escândalos e violência — assim como boa parte do Brasil.

“Ô cidade, ô menino

Que me ardem de paixão

Eu prefiro que essas flechas

Saltem pra minha canção

Livrem da dor meus amados”

Em sua imagem, São Sebastião está com flechas no corpo, que sofre com a tortura de algozes implacáveis. Gil e Milton se ardem de dor e sofrimento e imploram, em um lance de absoluta excelência poética, que aquelas armas — bem como as feridas decorrentes delas — saiam de São Sebastião/cidade maravilhosa e ataquem a canção. Deixa a poesia sangrar! Em um lamento resignado — pois sabem da impossibilidade de tal feito —, mas nem por isso sem esperança, os dois se dispõem a sacrificar a arte para livrar os irmãos, seus concidadãos, da dor.

Colocar a arte a serviço do alerta, da beleza e da paixão foi também a missão de vida que envolveu outro Sebastião. Salgado não foi canonizado, mas revelou-se uma entidade entre aquelas de maior grandeza a pisar a Terra para revelar aos seus irmãos a pureza, a riqueza e as tragédias da vida. Mineiro de Aimorés, rodou o mundo para colorir, em preto e branco, a maior quantidade possível de matizes que compõem este complexo e fascinante planeta. Sofreu as flechadas do tempo e da coragem de aventurar-se. Contraiu uma malária na Indonésia em 2010, cujas complicações evoluíram para uma leucemia que o levou daqui. Bem-aventurados são aqueles que têm à disposição o legado do fotógrafo.

Para além de sua missão humanista, Sebastião Salgado nos ensinou também que comunicar é um ato de coragem, mas, sobretudo, de persistência. Ele não fez UM trabalho brilhante, mas vários. Ele não se arriscou UMA vez ao longo da trajetória, mas muitas. Ele não se entregou intensamente, com amor e dor, a UM único projeto, mas dedicou a vida inteira a construir uma obra singular, como sua fonte de sobrevivência e dignidade, mas também como um presente para a humanidade que adia a reflexão sobre sua viabilidade futura.

Sebastião Salgado não mudou o mundo, mas fez dele sua grande cidade. Ilustre testemunha de um tempo, será para sempre lembrado e celebrado. Vivo, já era uma lenda. Agora, tornou-se patrimônio sagrado de todos os povos. Se são muitas as flechas ao longo do caminho, a vida, mesmo assim, pode ser uma fotografia espetacular. “O mundo é bão, Sebastião”, canta Nando Reis em homenagem ao seu filho e a todos que quiserem acreditar nisso. Temos Gil e Milton! Temos Minas Gerais! Temos o Instituto Terra! Temos o Rio de Janeiro e o rio Doce! Então, de fato — e de modo geral —, o mundo é mesmo um bom lugar. E ficou muito melhor depois que Sebastião Salgado passou por aqui.


(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

[the_ad_placement id="home-abaixo-da-linha-2"]

LEIA TAMBÉM

Uma dura realidade e constatação

🔊 Clique e ouça a notícia Encerrada a partida de futebol entre as seleções do Equador e do Brasil com um desfigurado 0x0, restou-nos, os amantes do esporte rei, a

Sobre carros, gibis e pulgas…

🔊 Clique e ouça a notícia Eu me debatia de um lado para o outro, tentando de todas as formas acabar com aquela coceira terrível. Acontece que meus “coleguinhas” da

Um time, um clube e uma instituição… no limbo

🔊 Clique e ouça a notícia Faz muito tempo, em nosso tempo de criança, em especial das originárias de famílias de menor poder aquisito, predominante nos distritos, povoados, aglomerados, guetos