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Cale a boca, superego!

Dr. Lucas Nápoli (*)

Nos últimos anos tenho atendido um número cada vez maior de pessoas que apresentam um padrão de comportamento marcado por uma espécie de compulsão à autocrítica. Trata-se de indivíduos que geralmente tem dificuldades de expor o que pensam e o que desejam mesmo em condições nas quais possuem liberdade para fazer isso. Não raro, muitas dessas pessoas experimentam grande sofrimento nas relações interpessoais porque facilmente se sentem culpadas e/ou não se consideram suficientemente interessantes.

O cerne do problema enfrentado por tais pacientes é o excesso de autocrítica. Eles estão o tempo todo se julgando, se condenando e prestando atenção a seus próprios defeitos. Neste artigo pretendo apresentar os resultados de minhas investigações clínicas acerca da gênese desse padrão de personalidade e sugerir aos leitores uma técnica terapêutica que tem funcionado com alguns pacientes.

Uma forma de interpretar teoricamente o que acontece com essas pessoas é recorrendo ao conceito psicanalítico de superego. Esse termo, que literalmente significa “aquilo que está acima do ego” foi cunhado por Sigmund Freud para caracterizar a parte do nosso Eu que nos compara com a versão ideal de nós mesmos e que, ao fazer isso, costuma nos proporcionar aquele estado caracterizado por uma mistura de culpa e vergonha que popularmente denominamos de “peso na consciência”. No dia a dia o superego se manifesta como aquela “vozinha” na nossa cabeça que nos critica, nos condena e faz a gente se sentir mal sobretudo quando fazemos algo que sabemos que é errado do ponto de vista de nossos padrões morais.

As pessoas às quais estou me referindo neste artigo podem ser caracterizadas como tendo um superego excessivamente feroz, ou seja, elas se condenam e se criticam muito além do que seria necessário. Diferentemente do que acontece com as pessoas psicologicamente saudáveis, não há nesses pacientes uma força contrária ao superego capaz de amenizar as críticas que ele naturalmente faz. É como se eles estivessem o tempo cometendo erros e sendo duramente criticados por isso. Paradoxalmente, tais pessoas costumam ser “muito bem comportadas” do ponto de vista ético, isto é, raramente prejudicam voluntariamente os outros e se preocupam até demais em levar uma vida honesta e decente. Isso reforça nossa constatação de que esses pacientes possuem um superego que funciona de modo desordenado, completamente alheio à realidade de vida da pessoa. Em outras palavras, ao invés de terem uma imagem positiva de si mesmos, tais indivíduos se enxergam da pior maneira possível.

Por que isso acontece? Minha hipótese, formulada com base nos relatos das histórias de vida desses pacientes, é a de que esse superego feroz, incontrolável e exageradamente exigente é resultante do convívio na infância com pais excessivamente dominadores e controladores. Todos os pacientes que atendi com esse perfil me disseram que na infância foram obrigados a adotar uma posição servil e submissa diante de pelo menos um dos pais (ou cuidadores substitutos).

A análise desses relatos sobre a história infantil revela que essa posição de submissão fora assumida como uma estratégia de defesa diante de figuras parentais que reagiam de forma repressora (geralmente com agressividade) em face das expressões de espontaneidade e autonomia da criança. Devido à manutenção consistente desse padrão de relacionamento, gradualmente o paciente fora desenvolvendo um raciocínio inconsciente que pode ser expresso pela seguinte fórmula: “Se (meu pai/minha mãe/meu cuidador) não me deixa fazer quase nada e/ou me condena quando tento fazer, então isso significa que devo ser uma pessoa ruim (ou burra, fraca, incapaz), que nunca faz nada certo”.

A emergência desse raciocínio aliada à formação do superego com base nas figuras parentais repressoras constituem os alicerces da compulsão à autocrítica. Com efeito, Freud descobriu que o superego nada mais é que o produto da internalização da dimensão coercitiva do cuidado parental. Em outras palavras, é como se carregássemos em nosso psiquismo para o resto da vida a faceta impositiva dos nossos pais. Todo adulto responsável sabe que inevitavelmente precisará compelir seus filhos a fazer certas coisas ou deixar de fazer outras para o bem deles, já que, na infância, ainda não são capazes de agir de forma autônoma. Contudo, nem todos os pais estão preparados para empregar a dose suficientemente boa de coerção sobre as crianças. Por diferentes razões, alguns “pesam a mão” e acabam tornando-se repressores, dominadores e autoritários, podando a espontaneidade dos filhos e fazendo-os acreditar que sempre estão errados. O resultado é a formação de um superego excessivamente feroz, que condena o sujeito mesmo quando ele não está fazendo nada de errado e exige um nível de excelência inalcançável.

Para alguns pacientes com esse quadro patológico tenho sugerido uma estratégia que tem se mostrado eficaz na redução do nível de autocrítica. Trata-se de sabotar o fluxo condenatório do superego mediante o seguinte raciocínio consciente: “Eu estou sempre certo independentemente do que eu faça”. Eu sei que isso não corresponde à realidade, mas as críticas do superego também não. Portanto, sugiro aos pacientes que exercitem esse pensamento cotidianamente como uma forma de compensar a força autocondenatória do superego. Os pacientes relatam que, ao fazerem consistentemente isso, sentem-se mais à vontade para se manifestarem e interagirem com outras pessoas. Minha hipótese é a de que, em função da repetição constante, tal raciocínio tende a se tornar cada vez mais internalizado e, aliado às recompensas trazidas pela própria mudança de comportamento, acabará reduzindo a força dos ataques superegoicos.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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