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Recheio de infância

FOTO: Freepik

Casa da avó. Início dos anos 90. Férias de janeiro. Calorzão. Um tanto de primos crianças e pré-adolescentes cheios de energia. O cenário perfeito para o caos.

Durante boa parte da vida, nós morávamos longe do restante da família. Nas férias, a gente passava algumas semanas na casa da minha vó e revia os parentes. Uma festa! Era legal ver desenhos, jogar videogame ou fliperama, mas felizmente ainda eram tempos em que as telas não eram tão fascinantes assim.

A meninada passava o tempo mesmo era com uma bola na rua, jogando baralho, adedanha (que talvez você conheça como adedonha ou stop). Na minha família, criamos nossa própria brincadeira, com muito mais adrenalina – e muito menos juízo.

Basicamente a gente precisava só de um colchão, de preferência de casal e que não fosse dos melhores ou dos mais rígidos. Na casa da vó tinha muitos. Os de espuma, mais molinhos, eram ideais. Ele precisaria ser dobrado ao meio, como uma tapioca, muitos anos antes de conhecermos uma, que só se popularizaria pelo Sudeste bem depois.

À exceção de um, os primos se dispunham lado a lado, deitadinhos encaixados entre as partes do colchão, como ingredientes do recheio. O escolhido da vez seria o personagem principal: o temido Doutor Amassagudo, que nomeava a brincadeira. Seu privilégio era a liberdade irrestrita de pular sobre os demais, a uma camada de colchão abaixo, que se contorciam e se protegiam como podiam – não podiam muita coisa.

O Amassagudo saltitava para lá e para cá sobre um terreno fértil de crianças. Pegava impulso, voava alto e caía aleatoriamente sobre algum minifamiliar, que gargalhava enquanto tentava escapar, mas tomava um novo pisão, à espera da sua vez de assumir a liderança do jogo. Um estranho, gostoso e absolutamente insalubre sadomasoquismo infantil.

Ao fim do período pré-determinado, o ex-doutor perdia o trono, retornava à plebe e se acomodava sob o colchão para que outro pequeno maníaco assumisse a função, com sede de vingança para desfrutar dos prazeres do título. Todos se revezavam com consentimento, não importava seu tamanho ou gênero. Democracia pura.

A prática era completamente proibida pelos adultos, claro. Para ficar mais emocionante, era executada clandestinamente, às escuras, até alguém com mais idade e senso de responsabilidade logo perceber a barulhada, nos surpreender, brigar com a gente e ameaçar nos deixar de castigo se voltássemos a saltar uns sobre os outros.

Certa vez, notamos a aproximação de um adulto patrulhando a área, interrompemos a brincadeira abruptamente e escapamos todos pela janela, que era alta, fugidos para o quintal. Tínhamos experiências em saltos. Na cena do crime, permaneceu apenas um solitário colchão.

Ninguém mais tem a menor ideia de em que contexto essa insanidade foi criada, nem quando, ou quem a batizou com o simpático nome. Nem quem teve a honra de ser o último doutor e dar o derradeiro pulo sobre os demais.

Para me certificar de que essa era mesmo uma tradição da minha família, busquei no Google e nunca houve na internet qualquer menção ao verbete Amassagudo. Nas nossas memórias, há muitas.

Curioso pensar que amizades que duram para sempre foram forjadas à base de laços sanguíneos, pequenas aventuras e pisões nas costelas. Uma tapioca sabor de infância, com recheio de cumplicidade e gotinhas da mais inocente falta de noção.


(*) Mineiro, jornalista e mochileiro.
Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.

Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.

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