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Por que não dá para fazer terapia consigo mesmo (autoanálise)?

Dr. Lucas Nápoli (*)

Frequentemente pessoas me perguntam se a autoanálise é possível, ou seja, se um indivíduo poderia fazer terapia consigo mesmo ao invés de recorrer à ajuda de um profissional. Minha resposta é sempre um veemente “não”. Diante disso, alguém pode alegar que minha posição é suspeita visto que uma das minhas fontes de renda é justamente o trabalho como psicoterapeuta. Assim, para que compreendam que minha oposição à possibilidade de uma autoanálise não está a serviço de algo parecido com uma política de “reserva de mercado”, pretendo oferecer aqui as razões nas quais baseio meu juízo.

Primeiramente, é importante relembrar que existem diversos métodos psicoterapêuticos. Embora todas as abordagens procurem aliviar o sofrimento psíquico das pessoas, cada método trabalha com pressupostos teóricos e objetivos específicos. Nesse sentido, o que um terapeuta cognitivo-comportamental busca ao tratar um paciente deprimido é bastante diferente dos objetivos que um psicanalista, como eu, procura alcançar na mesma situação.

Considero importante emitir esse aviso porque os motivos pelos quais acredito que a autoanálise é impossível estão diretamente relacionados ao modo como compreendo o adoecimento psíquico. Modo que, por sua vez, é tributário da minha afiliação ao campo psicanalítico.

Do ponto de vista da Psicanálise, em 99% dos casos, uma pessoa decide procurar ajuda psicoterapêutica quando não está mais suportando os efeitos do seu autoengano. Sim: a existência humana, na perspectiva psicanalítica, é essencialmente marcada pelo autoengano. Nós estamos o tempo todo mentindo para nós mesmos para conseguirmos conviver com outras pessoas. Por que isso acontece? Porque os seres humanos possuem duas dimensões que frequentemente estão em conflito: uma dimensão que poderíamos chamar de natural/espontânea e outra que pode ser nomeada como artificial/social. Por um lado, somos mamíferos dotados de impulsos sexuais e agressivos e do outro somos cidadãos que vivem num ambiente social e civilizado.

Para nos adaptarmos a esse ambiente artificial, que nós mesmos criamos, somos obrigados a conter boa parte das nossas inclinações naturais, próprias da nossa condição de mamíferos. Por exemplo: não podemos fazer sexo com todas as pessoas que desejamos e nem sempre na hora em que desejamos. O que fazemos, então, com o impulso sexual espontâneo que emerge em nós? A gente o contém, o satisfaz parcialmente nos momentos adequados e com as pessoas apropriadas ou mediante a masturbação ou ainda o descarrega de forma indireta e simbólica por meio de outras atividades.

Contudo, tais procedimentos não são suficientes. A adaptação que o ambiente sociocultural nos exige não é apenas externa. Não se trata apenas de não fazer aquilo que se tem vontade. Todos os nossos esforços educativos (pelo menos os tradicionais) visam convencer os indivíduos a silenciarem as vozes de sua dimensão natural/espontânea e a se deixarem governar tão-somente pelos parâmetros e valores sociais. Em outras palavras, a educação, isto é, o conjunto de procedimentos que empregamos para promover a adaptação do indivíduo ao universo social, visa, em última instância, submeter a dimensão “animalesca” do homem à dimensão “civilizada” mediante uma transformação interna, psíquica.

O resultado inevitável desse processo é o surgimento daquilo que Freud chamou de “mecanismos de defesa”, isto é, processos mentais que evitam que o sujeito reconheça conscientemente suas inclinações espontâneas, as quais ainda permanecem nele a despeito do processo educacional. Sim, pois a educação não consegue extirpar nossa dimensão natural/espontânea. Nós apenas somos convencidos a olhar de modo negativo para essa dimensão a tal ponto que passamos a desejar que ela não exista. Por meio de mecanismos de defesa como a repressão, por exemplo, não conseguimos eliminar nossos impulsos “animalescos”, mas, pelo menos, evitamos reconhecê-los. Em outras palavras, fingimos para nós mesmos que eles não mais existem e que somos seres perfeitamente adaptados ao universo social, ou seja, pessoas “do bem” e “de bem”.

Acho que a essa altura você já deve suspeitar da razão pela qual acredito na impossibilidade da autoanálise. Com efeito, se desde a mais tenra idade somos levados pelas pressões sociais, a princípio encarnadas nas palavras de nossos pais, a fingir para nós mesmos que somos melhores do que efetivamente somos, que garantias poderemos ter de que, numa suposta autoanálise, teremos a capacidade de sermos sinceros com nós mesmos?

Por mais franca que uma pessoa possa ser em relação às suas motivações, seu olhar estará sempre embaçado por seus mecanismos de defesa. Afinal, seu desejo de corresponder às expectativas do Outro e se ver como uma pessoa “do bem” e “de bem” será sempre mais forte do que seu esforço para se autoenxergar. É por isso que a presença de um terapeuta é fundamental. De fato, é ele quem, desprovido dos vieses que ofuscam o olhar do paciente, estará suficientemente aberto para escutar as vozes da dimensão natural/espontânea que, ainda que abafadas, se fazem ouvir…

(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

Comments 1

  1. Silmara Ortiz Ribeiro says:

    Acredito que a auto análise seja difícil, porém, não impossível. Freud mesmo se utilizou da auto análise para desvendar suas neuroses em relação a seu pai.Por isto acredito que algumas pessoas possam fazer sua auto análise no início e depois complementar com a terapia psicanalítica.Porque para buscar ajuda do profissional, primeiramente precisamos admitir a nós mesmos que temos um problema, e para isto devemos analisarmos antes de qualquer coisa.

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