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Ligue o f*da-se para si mesmo

(*) Lucas Nápoli

Nos últimos anos, exemplares do livro de autoajuda “A Sutil Arte de Ligar o F*da-se” têm ganhado as prateleiras de centenas de milhares de pessoas. Acredito que tal sucesso de vendas se deva menos ao conteúdo do livro (que não é ruim, diga-se de passagem) do que ao título da obra. Afinal, com base no que se lê na capa, infere-se que o autor parece estar prometendo ensinar aos leitores uma fórmula para se tornarem capazes de não mais se importarem tanto com determinadas questões. Afinal, não é isso o que significa a expressão “ligar o f*da-se”? As pessoas geralmente utilizam essa frase quando pretendem deixar de se preocupar com determinadas problemas. Por exemplo, “Acho que vou ligar o f*da-se para as queixas do meu namorado.”.

Penso, portanto, que a maioria das pessoas compra o livro imaginando que finalmente vão conseguir deixar de se importar com certas questões do dia-a-dia que insistem em roubar sua paz. Trata-se, contudo, de uma expectativa que não se concretiza, pois o autor do livro não cumpre a promessa de ensinar essa suposta fórmula mágica. De todo modo, o que me interessa neste texto é refletir sobre o que está na base desse desejo que aparentemente se faz presente em um número imenso de pessoas de não mais se preocuparem com certas coisas.

Estaríamos vivenciando uma epidemia do chamado “transtorno de ansiedade generalizada”? De fato, essa modalidade de adoecimento emocional se caracteriza precisamente pelo excesso de preocupações. Será que há tanta gente assim experimentando essa patologia? Acredito que não. No entanto, vivemos numa atmosfera cultural na qual o ideal do desempenho de excelência está o tempo todo presente nas mais diversas dimensões da existência: os pais são cobrados a serem cuidadores excelentes, os trabalhadores são cobrados a buscarem um aprimoramento constante, os casais são cobrados a terem um “casamento blindado”, e assim por diante. Não por acaso, proliferam pela internet afora inúmeros “treinamentos” que trabalham com a ideia de que você pode sempre ser melhor do que é.

Essa atmosfera cultural é o ambiente propício para que as pessoas alimentem os seus processos naturais de autocobrança e passem a se sentir constantemente em dívida com seus respectivos ideais. É dessa aflição provocada pelo pensamento de nunca ser suficiente, de sempre estar aquém, que nasce o desejo de ligar o f*da-se. Trata-se, portanto, de um anseio de libertação da escravidão imposta pela busca frenética pelo desempenho ideal. O problema é que esse desejo de libertação sempre vem acompanhado de um processo perigosíssimo para a saúde emocional: a autovitimização. Ao ansiar pela possibilidade de ligar o f*da-se, a gente começa a se perceber como vítima do mundo, como um pobre escravo obrigado a cumprir demandas, que só será liberto quando finalmente conseguir deixar as coisas para lá, não mais se importar, não mais se preocupar. Ora, essa é uma fantasia profundamente infantil. Já parou para pensar nisso? É a criança que não precisa se preocupar com muita coisa. É a criança que pode se dar ao luxo de ligar o f*da-se para uma série de coisas porque os seus pais estarão lá para apoiá-la e protegê-la ainda que ela mesma se coloque em risco.

Uma das coisas que caracteriza um adulto é justamente o fato de possuir diversas fontes de preocupações: boletos a pagar, pessoas que estão sob sua dependência, demandas profissionais e familiares etc. Em outras palavras, ser adulto significa justamente não poder ligar o f*da-se. Isso não significa, contudo, que precisamos ser escravo de ideais. Aliás, a busca por excelência e perfeição é também um indicativo de imaturidade. A criança e o adolescente, por ainda não terem muita experiência de vida, podem acreditar que seja possível ter uma vida “épica”, perfeita, com tudo dando certo, o paraíso na Terra. Ora, espera-se que um adulto já tenha vivido o suficiente para saber que isso só acontece nos contos de fada. A vida real é atravessada por cardos e abrolhos, ou seja, por problemas, desafios, impasses, conflitos etc.

Assim, proponho que em vez de continuar com essa fantasia infantil de “ligar o f*da-se” para as coisas, você comece a ligar o f*da-se para si mesmo. Essa não é uma proposta nova. Durante toda a Antiguidade e a Idade Média, a humanidade trabalhou com a ideia de que a vida não é fácil e é preciso aceitar essa realidade. Foi só na Era Moderna que passamos a acreditar na possibilidade de um paraíso terreno, ou seja, na possibilidade de uma vida livre de dificuldades e sofrimentos. Os ideólogos da Modernidade propuseram a ideia de que o sofrimento humano seria advindo de um arranjo equivocado das contingências de vida. Assim, segundo eles, bastaria dominarmos a natureza e “corrigirmos” a sociedade que poderíamos ser felizes para sempre. É essa ideia tresloucada, surgida há cerca de cinco séculos, que atualmente encontra eco em todas essas propostas de “vida épica” e similares que circulam pela internet.

Ligar o f*da-se para si mesmo significa abandonar a fantasia infantil de viver despreocupado, livre de problemas, mas também significa renunciar aos ideais inalcançáveis de excelência em todas as esferas da vida. A aceitação da realidade com todos os seus obstáculos, impasses e limitações insuperáveis é um requisito fundamental para a maturidade emocional.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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