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Como você lida com frustrações?

Dr. Lucas Nápoli (*)

Nem sempre as coisas acontecem do jeito que a gente gostaria. Aliás, não seria exagero dizer que, na maioria das vezes, as coisas que não acontecem conforme desejamos. Com efeito, a nossa própria entrada na realidade compartilhada é feita por meio da passagem pela experiência da frustração de expectativas. Quem descobriu isso foi o psicanalista e pediatra inglês Donald Woods Winnicott, mencionado na coluna anterior a propósito do conceito de falso self.

Winnicott descobriu que, no início da vida, a maioria de nós vivencia um estado mágico onde nossa necessidade de alimentação é satisfeita quase sempre de modo oportuno, o que nos leva a acreditar que somos nós mesmos quem criamos, pela força do desejo, o objeto que nos satisfaz (geralmente o seio materno). Em outras palavras, como a maioria das mães não demora para amamentar seus bebês tão logo percebe que eles precisam de alimento, os pequenos são levados a crer que são eles mesmos quem produzem a vinda do seio. A propósito, é para este estágio do desenvolvimento que regridem as pessoas que acreditam no poder do pensamento positivo de “atrair” coisas boas.

Após o terceiro ou quarto mês de vida, as mães começam a não mais atender a necessidade de alimentação dos bebês de modo tão imediato, levando-os a vivenciarem com mais frequência a experiência da frustração. É nessa fase que os pequenos se dão conta de que existe uma realidade para-além deles mesmos e de que essa realidade possui uma dinâmica própria que nem sempre está alinhada com seus desejos. Dito de outro modo, ao ser frustrado pela demora da mãe, o bebê finalmente descobre a realidade. Nesse sentido, a porta através da qual adentramos o mundo real não é nada confortável.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud, expressou essa mesma ideia ao longo de seu famoso livro “O mal-estar na civilização”, de 1930, no qual defende a tese de que a existência humana é inelutavelmente marcada pela experiência do desconforto, da frustração, do mal-estar. Para Freud, isso decorreria, dentre outras razões, do fato de que existe um descompasso estrutural entre a realidade e nossos desejos – coisa que, como Winnicott nos mostrou, a gente descobre já nos primeiros meses de vida.

Portanto, a frustração faz parte da vida e não há como existir sem experimentá-la com muita frequência. Nem sempre podemos comprar tudo o que gostaríamos; nem sempre podemos ir aonde gostaríamos; coisas que um dia desejáramos com tanta força, hoje não nos encantam mais; nossos corpos vão aos poucos se desgastando, perdendo a beleza e a jovialidade que tanto gostaríamos de preservar; estamos vulneráveis a infortúnios aleatórios como assaltos, acidentes etc. Enfim, se eu fosse listar aqui todas as fontes de nossas frustrações cotidianas, este texto se transformaria num calhamaço gigantesco. Então, o que fazer? Simplesmente resignar-se e aceitar as frustrações de forma indiferente?

Mais ou menos. Creio que existem duas formas básicas de lidar com as frustrações: uma saudável/madura e uma patológica/imatura. Comecemos pela segunda. A forma imatura e, portanto, adoecida de vivenciar as frustrações é aquela que parte da premissa de que a existência das frustrações seria uma espécie de “falha do sistema”. Quando se cria a primeira versão de um programa de computador, é natural que os usuários acabem descobrindo “bugs”, ou seja, falhas na programação do software, as quais costumam ser corrigidas na versão seguinte. Quem lida com as frustrações de maneira patológica, encara a existência delas como bugs da realidade, ou seja, falhas que não deveriam existir e que precisam ser corrigidas. Ao partir dessa premissa, tais pessoas apresentam uma dificuldade para aceitar as frustrações de seus desejos e expectativas e acabam desenvolvendo atitudes destrutivas como a lamentação, a autovitimização e a culpabilização dos outros. Em outras palavras, quem lida com as frustrações dessa maneira imatura comporta-se como uma criança que faz pirraça quando não tem seus desejos atendidos pelos pais.

Por outro lado, os indivíduos que lidam com as frustrações de forma saudável as percebem como elementos necessários e inerentes à realidade. Em nossa analogia, tais pessoas não encaram as frustrações como “falhas do sistema”, mas como parte da programação normal. Elas entendem que vivências de frustração são condições indispensáveis para o amadurecimento e que grande parte do progresso humano do ponto de vista social, político e tecnológico se deve justamente à existência das frustrações. A democracia, por exemplo, jamais teria sido inventada se não houvesse uma insatisfação dos gregos antigos com a tirania. Ao se basearem na premissa de que as frustrações são experiências necessárias e mesmo desejáveis visto que contribuem para o crescimento, as pessoas que lidam com a frustração de forma amadurecida não se desesperam, não se vitimizam e nem saem afoitas em busca de culpados quando se sentem frustradas. Pelo contrário, além de aceitarem de modo paciente o que a realidade lhes apresenta, tais indivíduos buscam enxergar nas frustrações as oportunidades e possibilidades que elas fomentam. Ao invés de se sentarem e chorarem, essas pessoas procuram encontrar meios para superar as frustrações seja tornando-se mais prudentes, buscando alternativas ou simplesmente sentindo-se gratas por não terem sofrido um infortúnio maior.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

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