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A origem infantil do machismo

Dr. Lucas Nápoli (*)

Nas duas últimas décadas temos assistido a uma nova onda de debates, estudos e movimentos sociais vinculados à temática do feminismo. Diferentemente das discussões anteriores relacionadas ao assunto, os discursos e práticas feministas no mundo contemporâneo não visam apenas a conquista da igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas também a desconstrução de certas formas de pensamento que sustentam e legitimam um tratamento desigual proporcionado às pessoas do gênero feminino nas várias dimensões da existência.

Uma dessas formas de pensar que estão na base das práticas de desigualdade e discriminação de gênero é o que se convencionou chamar de machismo. Trata-se de uma ideologia que se expressa de forma implícita em diversas atitudes, comportamentos e até formas institucionais e que pode, eventualmente, ser manifesta de forma declarada por certos indivíduos e grupos. O machismo está estruturado em torno de uma ideia básica: os homens seriam intrinsecamente superiores às mulheres e, por essa razão, deveriam gozar de certos direitos que seriam vedados a elas.

A ideologia machista é um fenômeno social complexo, condicionado por fatores de ordem social, econômica, cultural e histórica. No entanto, considerando que o machismo se materializa nas atitudes e comportamentos de indivíduos é razoável supor que ele esteja enraizado em uma base psicológica. Em outras palavras, deve haver um conjunto de condições psíquicas que permitem que o pensamento de que homens são superiores às mulheres se apresente a algumas pessoas como uma ideia legítima, defensável e coerente com a realidade.

Acredito que tais condições psíquicas correspondam à não superação daquilo que Sigmund Freud, pai da Psicanálise, chamou de “complexo de castração”. O termo “complexo” no campo psicanalítico designa um conjunto de ideias articuladas entre si e em torno de uma ideia central. Uma característica importante dos complexos é que eles consomem muita energia psíquica, como se fosse uma espécie de ralo no interior do psiquismo. Quando estamos dominados por um determinado complexo, boa parte das nossas atitudes e comportamentos são motivados por ele.

É exatamente isso o que acontece com meninos e meninas de 4 a 5 anos (aproximadamente) quando se deparam com o problema da diferença entre os sexos. Diferentemente dos adultos que entendem (pelo menos, conscientemente) que existem dois sexos, as crianças naquela faixa etária acreditam na existência de apenas um: o masculino. Isso se deve ao fato de os meninos possuírem o pênis, órgão que, ao contrário da vagina, é explícito e saliente. Como a mente infantil se deixa levar facilmente pelas aparências, tanto meninos quanto meninas concluem que o corpo humano “padrão” é o masculino. O corpo feminino seria uma versão “deficiente” desse corpo “padrão” por não possuir o pênis.

Em geral, ao fazerem essa constatação, os meninos concluem que as meninas não nasceram assim. Na visão deles, elas teriam nascido com o corpo “padrão”, mas teriam sido castradas por mexerem demais no pênis. É esse raciocínio que leva os meninos a suspenderem o ímpeto masturbatório que costuma aparecer nessa faixa etária de 4 a 5 anos. Assim, eles passam a ter medo de também serem castrados. As meninas, por sua vez, sabendo que não foram castradas, concluem que nasceram “com defeito”, “incompletas” e passam a ter inveja do pênis dos meninos.

É esse conjunto de ideias, raciocínios e conclusões que Freud chama de “complexo de castração”. Todos nós passamos por essa fase e ela deixa marcas indeléveis tanto na psicologia masculina quanto na psicologia feminina. É conhecida, por exemplo, a dificuldade que os homens geralmente têm de lidarem com derrotas e perdas, assim como as célebresinsatisfações e reclamações femininassão igualmente cantadas em verso e prosa.

Não obstante, conforme vamos amadurecendo, a conclusão infantil de que os meninos são “completos” e as meninas “deficientes” vai dando lugar à constatação de que não existem entre os sexos essa relação hierárquica, mas apenas diferenças. Assim, o complexo de castração é superado em favor do reconhecimento de que mulheres não têm pênis, mas têm vaginas, ou seja, também possuem um órgão genital. Quando o sujeito masculino encontrou condições para desfazer o equívoco da interpretação infantil da diferença entre os sexos, as únicas marcas deixadas pelo complexo de castração são aquelas que eu mencionei no parágrafo anterior, isto é, os traços típicos da psicologia masculina que não são necessariamente patológicos.

Por outro lado, quando o menino não foi capaz de ultrapassar a angústia de castração, ou seja, o medo de perder o pênis, ele continuará, mesmo na idade adulta, sustentando a crença na superioridade dos homens sobre as mulheres. Em outras palavras, continuará a considerar que há algo de intrinsecamente errado com o gênero feminino e que os homens, por serem “completos” devem usufruir de privilégios. Eis, portanto, a origem do machismo no desenvolvimento psíquico.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogoclínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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