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70 vezes Sócrates

FOTO: Divulgação

Eu nunca vi um jogo do meu maior ídolo no futebol. Estranho, né? É que o que o Sócrates representa vai muito além do esporte, muito além do Corinthians. Se ainda estivesse vivo, o Doutor teria acabado de completar 70 anos, celebrados no dia 19 de fevereiro.

Sócrates vestiu a camisa do Timão pela última vez em 1984, quando eu ainda nem era nascido. Sua última partida da carreira, pelo mesmo Botafogo de Ribeirão Preto que o revelara, foi em 1989 – eu até já estava por aqui, mas ainda nem sabia o que era futebol e só me descobriria corinthiano alguns anos mais tarde.
Muito mais do que de esporte, eu gosto de histórias e o Sócrates é um personagem fantástico da vida real. Foi craque, ganhou título, foi capitão da Seleção em Copa do Mundo, está em muitas das listas dos melhores jogadores de todos os tempos. Mas até aí ainda não tem nada de tão especial, de único.

O Sócrates tinha mais do que um calcanhar diferenciado: um intelecto muito acima da média e aqui nem falo da capacidade e da elegância dentro do campo. Para começar, cursou faculdade de Medicina enquanto já era atleta profissional. O Magrão, como era carinhosamente chamado pelos amigos, rompeu a bolha do mundo do esporte por sua participação ativa na busca pela redemocratização do Brasil, especialmente na campanha Diretas Já.

Nos anos 80, em pleno período de ditadura militar, ao lado de Casagrande e Wladimir, Sócrates liderou a chamada Democracia Corinthiana. O movimento ideológico revolucionário conferia direitos iguais a todos ligados ao futebol profissional do clube: atletas, presidente, roupeiro. Tudo era decidido pela maioria por votação, como regras de concentração antes dos jogos, direito à liberdade de expressão, até contratações de novos jogadores. Foi considerado, claro, uma afronta ao regime ditatorial que o país vivia.

O Filósofo da Bola tornou-se uma personalidade, amado pela Fiel Torcida, admirado, inclusive, pelos rivais, por estrangeiros, por todo mundo. Ganhou busto no Parque São Jorge, estátua na Arena Corinthians, inspirou livros. O jornal inglês The Guardian o elegeu como um dos seis esportistas mais inteligentes de todos os tempos – o único do futebol, diga-se de passagem.

Sócrates virou nome de prêmio concedido pela tradicional revista France Football a jogadores que se envolvem em ações de solidariedade. A primeira edição, em 2022, foi entregue pelo seu irmão e ex-atleta Raí ao senegalês Sadio Mané e no ano passado quem recebeu foi o nosso Vinícius Júnior.

Até a sua despedida foi icônica. Em 1983 profetizou: “Quero morrer em um domingo e com o Corinthians campeão!”. Sócrates partiu para filosofar em outro plano na madrugada do dia 4 de dezembro de 2011, um domingo, horas antes de o clube enfrentar o rival Palmeiras e sagrar-se campeão brasileiro.

A minha admiração pela figura do Doutor é conhecida. Pelos meus amigos, até pelos algoritmos. É só uma loja lançar qualquer produto relacionado ao Magrão, que já aparece o anúncio patrocinado para mim, e é certeza que eu vou levar. Perdi as contas de quantas camisetas com a clássica imagem do Sócrates com o punho levantado eu tenho.

A parede da sala do meu apartamento exibe um quadro, dessa mesma imagem, que eu ganhei de presente – e adorei. Muito bem feito, a mão, com a técnica de pontilhismo. Meu xodó. Um ou outro desavisado já me perguntou quem era na tela, questionou se era o Lula, eu ou outro barbudo qualquer. Costumo responder que sim, só para ver até onde vai.

Até que um dia meu pai me visitou, apontou para o quadro, abriu um sorriso e indagou:

— É o…? — e buscava nos arquivos da memória, mas não encontrava o nome que queria.

Na mais absoluta certeza de que ele de fato já sabia, brinquei:

— É sim, o Lula.

— Não! O…

— Eu?

— O Gonzaguinha!

Não é que parece mesmo? Mas não, não é. Eu fico com a pureza da resposta do meu pai para deixar aqui minha singela homenagem aos 70 anos do Doutor Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, que eu tenho certeza de que também viveu e não teve a vergonha de ser feliz; cantou, e cantou, e cantou a beleza de ser um eterno aprendiz.

Ídolo máximo, digno do panteão dos grandes nomes da história, como seu homônimo lá da Grécia Antiga, que, reza a lenda, viveu até, vejam só, os 70 anos. O Sócrates brasileiro até no nome foi amado por tantos, desafeto de outros e não deve ter tido uma trajetória de vida tão fácil. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita.


(*) Mineiro, jornalista e mochileiro.
Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.

Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.

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