Eu me debatia de um lado para o outro, tentando de todas as formas acabar com aquela coceira terrível. Acontece que meus “coleguinhas” da escola ficavam me observando com risadinhas nada sutis. Aquilo foi como se o mundo, o meu mundo estivesse “desabando”. Mas o antes e o durante foi muito agradável.
Eu acabara de me mudar para a rua Antoniete Fernandes, no bairro Nossa Senhora das Graças. Meu pai adquirira, com muito esforço, uma casa maravilhosa, próximo à linha do trem. O ano era 1977 e naquela época não tinha o “Mergulhão” que hoje permite o deslocamento de automóveis do centro para os bairros adjacentes e vice versa. Aliás, era uma espera agonizante em determinadas situações de emergência. Para uma criança de 5, 6 anos como eu, era pura diversão. E como nos divertíamos.
Me lembro de uma “competição” que fazia com meus colegas da rua. A gente apostava quais os modelos e as cores dos carros que iriam passar. E quando eles se enfileiravam na Avenida Minas Gerais era o “must”. Eu ficava na esquina no bar da Mira e do Cornélio, esperando os carros. Às vezes, voltava da escola com uma das minhas irmãs e ficava observando um após outro. Talvez isso explique minha paixão automobilística ainda em tão tenra idade. Em outro momento da minha história, tinha papéis pequenos e neles eu desenhava (ou pelo menos tentava desenhar) os carros da época.
Em casa, brincava com meu irmão de futebol na garagem, quando meu pai estava “de serviço” no quartel. No entanto, os meus dias eram solitários. Meu irmão, cinco anos mais velho, treinava no infantil do Democrata. Aliás, sempre foi goleiro dos bons. E foi nos meus momentos de solidão que eu aprendi a ler. Uma cartilha clássica, chamada “Caminho Suave” me ajudou nessa empreitada. À época, peguei gosto pela leitura e “devorava” gibis do Tio Patinhas, Pato Donald, Mickey e outras histórias com gosto de aventura. Me lembro de acordar de madrugada e, embaixo do coberto, me debruçar durante quase uma hora lendo, às vezes, relendo e “mergulhando” em cada aventura dos personagens da Disney. Foi aí que minha mãe (professora de português) pensou:
– Esse garoto precisa ir pra escola.
Foi o que aconteceu. Fui estudar no Instituto Colegial Neder. O diretor era um pastor muito querido. O local era amplo (hoje, infelizmente, não existe nem a sombra da instituição). Lembro-me da primeira professora, Maria Auxiliadora, uma verdadeira “tia” daquelas que a gente guarda com carinho no coração. E, claro, também me lembro do primeiro amigo de escola, o Roger. Sua fisionomia era única. Um pouco acima do peso, loiro, cabelos longos e muito animado. Éramos carne e unha na escola.
Na hora do recreio e após as aulas, ficávamos na quadra jogando futebol com tampinhas de refrigerantes. Às vezes, dividíamos a merendeira e tínhamos um fascínio pela Lucilene. Ah, nossa primeira paixão pueril. Ela era uma garota magra, olhos cor de mel, cabelos castanhos, longos, quase na altura da cintura. E tinha um sorriso cativante.
O bom amigo Roger e a paixão platônica pela Lucilene fizeram com que eu me apaixonasse pelo Neder. Até porque, a primeira escola a gente jamais esquece. Eu era o mais novo da turma. Afinal, com 5 anos e já no primeiro ano é algo praticamente impossível nos dias atuais. E foi na base da curiosidade que eu “desbravei” a escola.
Naquele dia, o Roger não estava na escola. E o cão que cuidava da escola também não. Foi quando eu decidi, na hora do recreio, entrar em território canino. A ponto de entrar até mesmo na casinha dele. Não me lembro exatamente quanto tempo passou para que eu começasse a sentir uma coceira muito forte no corpo inteiro. Foi quando eu senti que meu corpo estava cheio de pulgas e carrapatos. Uma das monitoras veio até mim e fez com que eu tirasse toda a roupa, ficando apenas de cueca. A essa altura, já não sabia o que era pior: a coceira ou a vergonha de ficar quase nu em frente dos meus colegas.
Eu me senti impotente e não havia muito o que fazer. Aquele foi um dos meus piores pesadelos no período escolar. Mas, como toda criança, fui levado, inocentemente, a pensar que no dia seguinte todos teriam esquecido o que aconteceu. Ledo engano. Não apenas se lembraram, como ainda fizeram algumas piadas. E agora? O Roger ficaria com vergonha do seu amigo? E a Lucilene? Jamais olharia para mim com aquele doce e meigo sorriso? Com o passar o tempo, entendi que meu lugar não era ali. Minha mãe acabou cancelando minha matrícula e eu repeti, no ano seguinte, o primeiro ano, agora em uma nova escola. Felizmente, as coisas foram diferentes. Ou nem tanto. Mas isso, é uma outra história.
Observatório
A ÚLTIMA GERAÇÃO DE CARNE
Governador Valadares, ano 2053. Vivemos numa cidade altamente desenvolvida, limpa, digitalizada e absolutamente livre de choros infantis. As indústrias proliferam e já não se vive apenas de comércio e turismo esportivo. O Pico do Ibituruna, que antes, fora um paraíso de crianças, observando asas deltas e parapentes, agora está deserto. Na verdade, não é que faltam crianças, mas a nova geração de bebês agora vem com manual de instruções, botão de volume e garantia de fábrica. Seus nomes? Neonatos Reborn.
Feitos de látex de alta performance e equipados com inteligência emocional artificial, esses novos bebês não sujam fraldas, não exigem leite morno às três da manhã, e — talvez o mais importante — não envelhecem. Sempre adoráveis, sempre obedientes, e nunca, jamais, questionadores.
A moda começou de forma inocente, claro. No primeiro quarto de século, um bebê reborn aqui, outro ali, comprados por colecionadores ou pessoas em luto. Mas logo virou tendência. Afinal, por que lidar com as inconveniências de uma criança real, cheia de necessidades, personalidade e, eventualmente, opiniões políticas, quando se podia ter um bebê com bluetooth?
Logo, as poucas áreas de lazer e áreas infantis da cidade se tornaram museus. Escolas primárias viraram centros de treinamento para babás de silicone. E os últimos professores do ensino fundamental foram demitidos por insensibilidade emocional. Afinal, eram um último e solitário eco de resistência, pois diziam um sonoro “não” às máquinas.
E foi nesse contexto que Eva, uma mulher de meia idade, moradora do bairro Nossa Senhora de Lourdes, acabou se tornando mãe de um bebê de verdade. De carne, osso e cólicas. Quando Eva contou aos colegas de trabalho que estava grávida de um filho biológico, eles olharam para ela como se tivesse anunciado que criaria um lobo no apartamento.
— Você sabe o que isso faz com o seu algoritmo de produtividade? — disseram.
— E as alergias? E o cheiro? Você vai mesmo sujeitar um ser humano a… realidade?
Eva deu de ombros. Pôs o nome de Francisco e o criou assim mesmo, na contramão da sociedade. Quando Francisco começou a andar, tropeçar e fazer perguntas inconvenientes, como “por que o céu é azul se o mundo é tão cinza?”, ela sorria com orgulho.
Enquanto isso, suas colegas cuidavam de seus rebornzinhos, que agora vinham com função de upload de memórias simuladas: choros virtuais, risadas programadas, aniversários editáveis. Alguns casais chegaram a se divorciar por discordarem sobre qual versão de firmware o bebê deveria rodar.
Foi então que um dia, as fábricas de reborns anunciaram: “Nova atualização! Agora com opção de adolescência removível. Por “apenas” R$ 3 mil, o seu bebê nunca passará pela fase do ‘eu me odeio e odeio você’.”
As filas deram a volta no mundo. Os protestos vinham apenas de grupos radicais — chamados “Humanistas de Primeira Onda” — que insistiam que o som de um bebê chorando à noite era um sinal de vida, e não uma falha de design.
No fim, Eva viveu para ver seu filho, um humano completo, tornar-se adulto. Começou seu curso de jornalismo na Univale e até participou de movimentos sociais em defesa da “verdadeira humanidade”. Francisco a questionou, a contradisse, e até a fez chorar. Mas num mundo feito de látex, silicone e respostas prontas, ele era a única coisa verdadeira que ela tinha. E ele foi também o único que compareceu ao seu funeral sem precisar ser ligado na tomada.
EDSON CALIXTO JUNIOR é escritor, teólogo e jornalista. Trabalhou no Diário do Rio Doce, Rádio Globo/CBN, Rede Novo Tempo de Comunicação, foi assessor de imprensa na Assembleia Legislativa do Paraná (2003 – 2010). Bacharel em Administração de Empresas pela FAGV, com MBA em Gestão, atualmente é servidor público federal.
SIGA-NOS em facebook.com/emdiacomonossotempo.
ACESSE nosso canal em youtube.com/@pontodeencontroentrevista.
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.