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Por que sentimos culpa?

Dr. Lucas Nápoli (*)

A culpa é um dos afetos mais desagradáveis de se experimentar. Ela geralmente aparece quando fazemos (ou temos a intenção de fazer) algo que nós mesmos consideramos errado. A culpa, portanto, pressupõe uma divisão do nosso eu em uma parte que faz algo (ou deseja fazer) e outra que avalia a primeira.

Essa divisão não se faz presente em nós desde o nascimento. De fato, no início da vida não temos conhecimento acerca do que é certo e do que é errado. Dizemos, portanto, que originalmente a criança é amoral, ou seja, seu comportamento não é influenciado por nenhum parâmetro ético. As barreiras morais só começam a ser apresentadas ao pequeno filhote de Homo sapiens quando os pais consideram a necessidade de impedir que a criança se comporte de determinadas maneiras e estimulá-la a agir de outras formas. Por exemplo, até determinada idade os pais permitem que seus filhos façam suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar e na hora em que quiserem. Todavia, a partir de certo momento, procuram estimular a criança a fazer uso do vaso sanitário e a deixar de urinar e defecar nas fraldas. É nesse processo que os filhos aprendem que fazer as necessidades fisiológicas em qualquer lugar e a qualquer momento é uma coisa errada e que usar o vaso sanitário é uma coisa correta.

Por outro lado, vejamos: se porventura a criança, após ter aprendido isso, eventualmente acabar defecando nas fraldas ao invés de usar o vaso sanitário, muito provavelmente ela não experimentará culpa. Nesse caso, o afeto será outro: a vergonha. Isso nos mostra que, para o surgimento da culpa, é necessária uma segunda condição, para-além da mera infração a uma norma.

Para identificarmos que condição adicional seria essa, talvez seja frutífero analisarmos alguns exemplos de situações que geralmente levam as pessoas a se sentirem culpadas. Quando uma moça trai seu namorado, é bastante provável que ela sinta culpa, ainda que o adultério não seja descoberto. O mesmo acontece quando insultamos uma pessoa numa discussão e sabemos que nossa fala foi excessivamente dura. Nesse caso, muito provavelmente também sentimos culpa. Por fim, um adolescente que se masturba diariamente e sabe que, do ponto de vista de sua religião, a masturbação é um pecado grave, também pode sentir muita culpa.

Creio que esses três exemplos são suficientes para que consigamos enxergar o segundo elemento necessário para o surgimento da culpa. O primeiro, como demonstrei, é a consciência da transgressão a uma regra moral que aceitamos como legítima. Por outro lado, com base nos exemplos acima, podemos verificar que o sentimento de culpa se manifesta sempre no contexto de uma relação com outra pessoa.

No entanto, essa não pode ser uma característica específica da culpa visto que, no caso da vergonha, isso também acontece. Com efeito, sentimos vergonha justamente quando cometemos um erro na presença de outra pessoa ou quando imaginamos a avaliação negativa que o outro faria do nosso comportamento. Nesse sentido, tanto a culpa quanto a vergonha podem ser caracterizados como afetos relacionais, ou seja, sentimentos que emergem em nós como efeito da nossa relação real ou imaginária com outra pessoa.

Qual seria, então, o aspecto específico e definidor da culpa? Se observarmos com cuidado os três exemplos que mencionei, veremos que, nos três casos, as ações realizadas, além de infringirem normas morais legítimas para os sujeitos em questão, produziam como consequências danos reais ou possíveis em outras pessoas. A moça que trai seu namorado sabe que, se a “pulada de cerca” fosse descoberta, isso provocaria dor e sofrimento em seu companheiro. Quando insultamos uma pessoa numa discussão sabemos que nossas palavras podem ferir emocionalmente o outro. Outrossim, o adolescente religioso que se masturba sabe que, na medida em que entende o onanismo como pecaminoso, ao praticá-lo está decepcionando Deus ou, mais precisamente, seus pais e líderes religiosos que, na prática, funcionam para ele como representantes da divindade.

A manifestação da culpa, portanto, depende de três condições: (1) a realização (ou intenção de realizar) de uma ação que, do nosso próprio ponto de vista, é avaliada como errada; (2) a vinculação dessa ação a um contexto relacional; e (3) a produção ou possibilidade de dano a outra pessoa.

Ao refletirmos sobre essa terceira condição, nos damos conta de que a culpa só pode se manifestar em pessoas que são capazes de se imaginar padecendo dos efeitos de suas próprias ações. Exemplificando: a moça que se sente culpada por trair seu namorado só consegue experimentar esse afeto porque possui a capacidade de se imaginar no lugar dele. De fato, ela sabe que se sentiria muito mal se descobrisse que o companheiro está a traindo.

A capacidade de se imaginar na pele da pessoa que sofre os efeitos de nossas ações pode se desenvolver de modo exacerbado em algumas pessoas. Eu já falei sobre isso em outro artigo. Trata-se de um fenômeno que denominei de “empatia patológica”. Nele o sujeito se coloca imaginariamente de forma tão intensa e frequente “no lugar do outro” que acaba se tornando alheio aos seus próprios interesses. À luz do raciocínio que desenvolvi neste texto, não é surpreendente constatar que indivíduos que sofrem de empatia patológica costumem experimentar a culpa numa frequência excessiva. Com efeito, a facilidade que possuem para se imaginar na pele do outro os leva a colocarem sempre em primeiro plano a preocupação com os possíveis danos de suas ações e a relativizarem a realização de seus desejos.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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