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Por que o complexo de Édipo continua “válido” ainda hoje? (parte 01)

Dr. Lucas Nápoli (*)

Toda pessoa com um nível básico de cultura geral sabe o que é o tal complexo de Édipo descrito por Freud. Em síntese, o médico austríaco inferiu, com base em sua experiência clínica com adultos neuróticos, que toda criança, quando tem por volta de 4 ou 5 anos de idade mais ou menos, desenvolve um desejo apaixonado pelo genitor do sexo oposto e sente ciúme e inveja do genitor do mesmo sexo.

Quem é do ramo, ou seja, quem é psicanalista ou já estudou um pouquinho de teoria psicanalítica, sabe que essa história é muito mais complexa. É possível, por exemplo, que a criança tome o genitor do mesmo sexo como objeto sexual e rivalize com o genitor do sexo oposto. Isso, aliás, aconteceria num primeiro momento com toda menina, já que a mãe seria o primeiro objeto de amor para ambos os sexos.

Por outro lado, o problema que a Psicanálise enfrenta para sustentar o conceito de complexo de Édipo atualmente não tem a ver com uma suposta “heteronormatividade” que estaria implícita nele. A maior dificuldade com a qual precisamos lidar diz respeito ao fato de que a descrição que Freud faz do Édipo só tem como referente um formato muito específico de família: aquele no qual a criança nasce e é criada no seio de um casal composto pelos seus dois genitores. O pai da Psicanálise não nos forneceu uma caracterização universal do complexo de Édipo, que pudesse ser aplicada para outros formatos de família, alguns dos quais são tão frequentes no mundo contemporâneo.

Como pensar o Édipo, por exemplo, numa família em que o pai morreu, sumiu ou nunca se fez presente e os filhos são criados apenas por sua mãe? Crianças que já nos primeiros dias de vida foram levadas para instituições de acolhimento e lá viveram durante 10, 15 ou 18 anos não passam pelo complexo de Édipo? E o que dizer daqueles meninos e meninas que são filhos de parcerias homossexuais? O Édipo valeria também para essas crianças? Se sim, como seria possível, já que Freud fala apenas de pai e mãe e nunca de dois pais ou duas mães?

O teórico que nos ajudou a “universalizar” o complexo de Édipo permitindo que ele pudesse ser aplicado às mais diversas configurações familiares foi o psicanalista francês Jacques Lacan. Para ele, o complexo de Édipo, tal como descrito na obra freudiana, seria, na verdade, um mito criado por Freud.

Todo mito possui dois aspectos: um imaginário e outro simbólico. O aspecto imaginário é a “historinha” com começo, meio e fim que todo mito narra e que geralmente percebemos como fictícia. Pense, por exemplo, no mito de Adão e Eva. É preciso uma boa dose de “suspensão de descrença” para acreditar que REALMENTE Deus forjou o primeiro homem a partir do barro e soprou-lhe a vida pelas narinas. A imensa maioria das pessoas entende que se trata de uma narrativa fictícia que tem por objetivo fornecer um ensinamento… SIMBÓLICO.

E aqui chegamos ao segundo aspecto dos mitos: sua dimensão simbólica. Cada elemento de um mito deve ser interpretado como um símbolo que representa determinado aspecto daquilo que se passa na realidade. O sopro de Deus nas narinas de Adão, por exemplo, pode ser interpretado como uma imagem que simboliza o fato de que a vida é um dom de Deus e não um elemento que vem do próprio ser humano.

Ao propor que a descrição freudiana do complexo de Édipo é de natureza mítica, Lacan está dizendo que devemos ler tal descrição com o mesmo espírito que abordaríamos os mitos de Sísifo ou de Narciso, isto é, encarando-a como uma narrativa ficcional que simboliza uma determinada realidade. Em outras palavras, Lacan está sugerindo que não tomemos, por exemplo, a tese freudiana de que o menino renuncia ao seu desejo de tomar a mãe como objeto sexual em função do medo de perder o pênis como uma descrição objetiva de uma situação que acontece com todas as crianças do sexo masculino. Para o psicanalista francês, circunstâncias como essa podem até estar presentes efetivamente na vida de alguns meninos, mas é óbvio que elas não são universais.

A proposta de Lacan é a de que tentemos extrair do mito edípico freudiano a sua dimensão simbólica, ofuscada pelo aspecto imaginário tão enfatizado pelo pai da Psicanálise. Pretendo, na coluna da semana que vem, explorar com a devida profundidade essa dimensão simbólica, estrutural, invariável presente no complexo de Édipo, mas já quero finalizar este texto expondo um exemplo de como podemos fazer essa interpretação simbólica partindo justamente da situação apresentada no parágrafo anterior.

Freud afirma que, ao perceber que as meninas não têm pênis, o menino imagina que elas são castradas e passa a ter medo de ser castrado também. Supondo que o pai seja o agente dessa castração, o pequeno aceita “perder a mãe” para o genitor em troca de preservar o próprio pênis. O que essa “historinha” representa? Qual realidade ela expressa simbolicamente? Ora, trata-se da própria constituição do homem como ser civilizado. Com efeito, assim como o menino aceita perder a mãe como objeto sexual, todos nós renunciamos à satisfação de uma série de impulsos e desejos para nos tornarmos “sócios” na sociedade humana. Em troca, assim como o menino preserva o próprio pênis, nós preservamos nossa liberdade, nossa capacidade de interagir com os outros e, em última instância, nossa própria vida.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

Comments 1

  1. Alcivan Gameleira says:

    Excelente explicação como psicanalista concordo com lacan

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