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O Eu não é só um outro

Dr. Lucas Nápoli (*)

Se você tem alguma familiaridade com textos de psicanalistas, já deve ter observado que nós frequentemente utilizamos o termo “ego”. O que você talvez não saiba é que essa palavra não é portuguesa, mas proveniente do latim. A expressão com que Freud, pai da Psicanálise, trabalha em seus escritos é “Ich”, vocábulo do idioma alemão cuja tradução para o português é “eu”, pronome que utilizamos para nos representarmos individualmente no plano do discurso falado ou escrito. Todavia, em vez de “eu”, os tradutores brasileiros da edição clássica das obras completas de Freud preferiram manter o termo latino “ego” que já havia sido escolhido pelos tradutores ingleses dos textos freudianos. Esses, por sua vez, optaram pela expressão em latim porque queriam ressaltar o fato de que o “Ich” freudiano designava uma entidade psíquica. Nesse sentido, a palavra “ego” deixaria mais explícito, por seu caráter pouco usual, que Freud não estaria se referindo ao “eu” no sentido corriqueiro que essa palavra possui no senso comum.

Fiz esse pequeno preâmbulo porque acredito que essa opção pela palavra “ego” em vez de “eu” na tradução brasileira das obras de Freud pode ter contribuído para que se desenvolvesse em terras tupiniquins uma visão parcial sobre o significado do termo “Ich” na obra freudiana. Do meu ponto de vista, há uma espécie de senso comum psicanalítico brasileiro que concebe o Eu apenas como uma dimensão enganosa, ilusória, narcísica do ser. É possível notar essa visão mutilada até mesmo no próprio discurso popular que inegavelmente é influenciado pela Psicanálise desde que Freud se tornou um autor conhecido. Quando, por exemplo, vemos pessoas dizerem que tal ou qual artista está mais preocupado com “seu ego” do que com a qualidade do seu trabalho, o que está na base dessa formulação é uma visão do “ego” como sendo tão-somente a imagem idealizada que a pessoa tem de si.

Todavia, não podemos reduzir o conceito de Eu em Psicanálise apenas a essa dimensão que passou a ser etiquetada (volto a dizer: por influência da própria Psicanálise) como “ego”. De fato, Freud apresenta o Eu, por um lado, como uma instância psíquica constituída mediante a identificação com outras pessoas. Essa é a dimensão imaginária do Eu, resultante de uma mescla das imagens de diferentes pessoas que passaram pelas nossas vidas e que foram objeto de nosso investimento amoroso. Mãe, pai, tios, avós, amigos, professores, parceiros amorosos, enfim, todas essas pessoas podem ser alvos de nossas identificações e acabarem sendo incorporadas em maior ou menor grau naquilo que denominamos de nossa “identidade”. Em parte, o que chamamos de Eu é uma colagem de traços de diferentes pessoas.

Mas o Eu não é só isso. Freud deixa muito claro em seus escritos que o Eu é também a própria pessoa em sua condição de sujeito, ou seja, de agente da própria vida. É o Eu entendido nesse sentido que o pai da Psicanálise entende que precisa ser fortalecido pela terapia psicanalítica. Trata-se do Eu autoconsciente que pode, inclusive, tomar a sua própria identidade (o Eu no primeiro sentido) como objeto de reflexão. Quando dizemos, por exemplo: “Eu sou uma pessoa tímida”, podemos ver claramente essas duas facetas do Eu: por um lado o Eu sujeito que olha para si e é capaz de se descrever e, por outro, o Eu objeto, ou seja, o eu no sentido da imagem de si (“pessoa tímida”).

O Eu sujeito é aquele que com quem o psicanalista estabelece uma parceria para a realização do processo terapêutico. Afinal, é o Eu sujeito quem olha para si e percebe que há algo que precisa ser modificado. Diferentemente do Eu objeto, para o qual o termo “ego” de fato cai muito bem, o Eu sujeito não se constitui passivamente. O Eu objeto vai sendo formado de modo automático como um mero produto das identificações. O Eu sujeito, não. Na medida em que é autoconsciente, o Eu sujeito é dotado da capacidade de reflexão e, portanto, toma decisões mediante uma análise das circunstâncias.

Isso não significa que o Eu sujeito seja soberano. Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa” e, ao falar isso, o autor não estava se referindo ao Eu objeto, mas ao Eu sujeito mesmo. Ao contrário do que advogam certas correntes filosóficas, a potência de autodeterminação do Eu sujeito é limitada. Com efeito, a própria existência do Eu objeto já representa alguma limitação para o Eu sujeito visto que as identificações que constituem o Eu objeto estão o tempo todo exercendo influência no plano inconsciente. Dentre essas identificações, destacam-se aquelas provenientes de figuras de autoridade, as quais funcionam como balizas morais para o Eu sujeito. Além disso, é preciso lembrar que, para-além do Eu sujeito e do Eu objeto, há uma dimensão impessoal da personalidade caracterizada pelos impulsos biológicos que brotam do corpo, os quais estão o tempo todo exigindo satisfação a despeito dos limites da realidade e dos parâmetros morais.

Por outro lado, todas essas limitações da soberania do Eu sujeito não o impedem de ser suficientemente autônomo. O que se busca na terapia psicanalítica é justamente fortalecer o Eu sujeito para que ele não se torne refém das identificações do Eu objeto nem um mero escravo de seus impulsos.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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