por Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola*

No artigo anterior, do dia 8 deste mês, comentei sobre o livro “O desbravamento das selvas do Rio Doce”, de autoria do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida (1878- 1965). Ele era um capixaba de São Mateus, onde fez os quatro anos do Curso Primário (atualmente, equivale aos cinco anos iniciais do Ensino Fundamental). Ele deixou o Espírito Santo para fazer o Ensino Secundário na cidade de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. Formou-se em Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, atualmente pertencente à UFRJ. Em 1905, como um jovem engenheiro, casado e com o filho ainda de colo, aceitou a proposta de contrato para trabalhar no traçado da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), cuja ponta do trilho ainda estava em Colatina, um pequeno povoado às margens do rio Doce. Ele iniciou o trabalho a partir de Baixo Guandu, sob o comando do engenheiro Pedro Versiani.
Antes de iniciar nossa história de hoje, preciso ainda acrescentar as imensas dificuldades que Ceciliano enfrentou para chegar até Colatina, dependendo de favores e se beneficiando, por ser capixaba, do apoio dos poucos grandes proprietários que haviam se estabelecido às margens do rio Doce. Essas dificuldades aumentaram muito na viagem até Baixo Guandu, numa navegação fluvial demorada e arriscada, considerando que era o mês de agosto de 2005. Daí pra frente, o serviço foi no interior da floresta, no qual se avançava, em um dia de trabalho, não mais que 2 km.
Vou trazer um causo contato por Ceciliano que permite entender o que é a territorialidade. Quando do trabalho de locação do traçado ferroviário, ao longo da margem direita do rio Doce, ele conheceu o “Senhor Antônio Elias”. Ele tinha subido o rio com o engenheiro Pedro Versiani para identificar o próximo local do “abarracamento” para onde iria mudar o acampamento, com o objetivo de iniciar o trabalho no último trecho para o qual havia sido contratado. Encontraram uma única clareira na mata: a posse do “Senhor Antônio Elias”. Hoje, isso é meio do caminho entre as atuais cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, provavelmente do lado oposto onde se criou depois a Terra Indígena Krenak, junto à foz do rio Eme, na margem esquerda. Ceciliano, sobre o percurso de canoa, até o ponto em que desembarcou na posse do Sr. Antônio, faz o relato: “de há muito, a maloca dos Crenaques vinha nos espreitando, enquanto, na em que estávamos [direita], de longe em longe, deparávamos com alguns Puris semicivilizados”. O abarracamento foi estabelecido num barraco alugado pelo Sr. Antônio. Como se travou uma amizade entre os dois, Ceciliano resolveu fazer a seguinte proposta. Segue sua fala:
“O senhor assiste, abandonado, neste deserto, sem escola, sem padre, sem meios de comunicação para as cidades. A estrada de ferro, dentro de dois anos, no máximo, assentará seus trilhos diante desta casa. Uma estação será construída em suas imediações. O Espírito Santo já se está beneficiando com o trecho inaugurado em seu território. Lá o governo cuida com muito carinho da instrução e dos problemas de transporte. É um Estado pequeno e, por isso, há facilidade de seus habitantes entenderem-se com o Presidente. O senhor podia entrar por essas matas, tomar as assinaturas das raras pessoas que se aventuram com suas famílias a ficar segregadas dos centros civilizados e solicitar que esta região fosse incorporada ao Espírito Santo. Vitória é muito mais perto daqui do que Belo Horizonte.”
Vejam bem, o engenheiro capixaba propõe que o senhor Antônio Elias organize um movimento para que a região hoje formada pelos municípios de Galileia, Conselheiro Pena, Resplendor, Aimorés, entre outros, passe a ser território do Espírito Santo. Qual a reação do Sr. Antônio? Como um bom mineiro, ficou calado com expressão de que “não gostou da brincadeira”. Ceciliano, abusando da boa vontade do seu anfitrião, repetiu a sugestão. Sr. Antônio se esquivou, mas ele tornou a insistir, e repetia a sugestão, apesar do silêncio. Entretanto, a paciência do Sr. Antônio acabou e, então, ele explodiu:
“Seu doutor, quero-lhe muito bem, respeito-o deveras, mas, por favor, não peça abaixo-assinado para Minas ceder parte de seu território à França, à Itália, ao Espírito Santo, a Pernambuco, à Turquia, à Espanha, a Sergipe; a Portugal… Seu doutor, Minas pode ficar com terra dos outros: da Argentina, da Bahia, do Peru, de S. Paulo, do Paraguai… mas o que ela achar que é dela, é dela. Seu doutor, ela pode aumentar; diminuir, nunca. Ceciliano se desculpou e o fato não afetou a relação, que durou para além da época em que ficou na ferrovia.
Vejam bem, Sr. Antônio vivia isolado com a família, tendo vizinhos distantes, com matas cerradas separando os poucos sítios habitados que existiam na margem direita do rio Doce, pois a esquerda era ocupada pelos Krenak. No entanto, ali estava um mineiro que se ofendeu com a proposta do engenheiro (seu doutor). Para ele não tinha diferença entre Espírito Santo, França ou Itália, entre Pernambuco ou a distante Espanha e Turquia; entre Sergipe e Portugal. Todos esses territórios tinham uma coisa em comum: não eram Minas Gerais. Mais, ainda, ele deixa claro que Minas pode tomar terras dos outros, seja da Argentina ou Bahia, do Peru ou São Paulo, do Paraguai ou qualquer outro. Minas Gerais pode tomar qualquer terra que achar que lhe pertence. Sr. Antônio deixa claro que Minas pode aumentar seu território, mas deixa muito claro: “diminuir, nunca”.
Esse causo ilustra perfeitamente o significado mais profundo do conceito de território e territorialidade. Cada pessoa, família e comunidade mantém uma relação de pertencimento com o território, do qual é a coletividade territorial. Assim, quando dizemos Minas Gerais, estamos nos referindo ao espaço geográfico, à população, à cultura, à subjetividade, à mineiridade e a tudo mais que cria uma realidade que ser mineiro. Isso tem nome, chama territorialidade, ou seja, tudo que é próprio e que nasce do território, dessa relação das pessoas com seu espaço. É isso mesmo, “seu espaço”, pois as pessoas compartilham coletivamente um pertencimento (“eu sou daqui”, “eu faço parte”, “eu pertenço a essa terra”) e de apropriação (“isto é meu”, “minha terra”, “meu domínio”, “esse é meu povo”). Daí se explica a reação do Sr. Antônio, pois o território não é simplesmente o espaço de sobrevivência ou de morada, mas refere-se a identificação psicológica, existencial e produtiva com o espaço, do qual nasce toda a sociabilidade, identidade e cultura. Portanto, não venha pedir a um mineiro para ceder parte do seu território a outro, pois isso tem nome, o pior de todos, único que não tem perdão hoje e sempre: traição.
*Professor do Curso de Direito da Univale; Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT; Doutor em História pela USP.
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