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História das histórias sobre o Vale do Rio Doce

por Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola*

Em 1959, pela coleção documentos brasileiros, da editora José Olympio, foi lançada a obra de Ceciliano Abel de Almeida (1878- 1965) “O desbravamento das selvas do Rio Doce”, que o autor define como um livro de memórias. A “Livraria José Olympio Editora” foi a maior e mais importante editora do Rio de Janeiro e do Brasil nos anos de 1940 e 1950, sendo sua livraria o ponto de encontro de renomados intelectuais e artistas, na antiga capital federal. Ceciliano Abel de Almeida foi prefeito de Vitória, capital do Espírito Santo, em 1909, época em que o chefe do executivo municipal era denominado de intendente, não existindo a separação entre Câmara e Prefeitura. Ele também foi professor de ensino secundário e primeiro reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, tendo assumido o cargo em 25 de maio de 1954; portanto, antes da federalização, que só ocorreu em 1961. Mas o autor Ceciliano, que nos interessa aqui, foi o jovem engenheiro que deixou a vida boa do Rio de Janeiro, o convívio dos amigos e a chefia do principal depósito da ferrovia Central do Brasil, trocando tudo pelas “brenhas do Rio Doce”.

O seu superior na Central do Brasil não concordava de modo algum com a ideia de ele deixar a chefia do depósito para ir para aquelas “brenhas”. Entretanto, o diretor da Central do Brasil, que também havia sido o diretor da faculdade Politécnica, quando Ceciliano estudava Engenharia, deu toda a força para ele aceitar o emprego na Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). “Você deseja reconhecer, explorar, locar e construir. Quer tarimbar enquanto é moço. Faz bem. Vá, menino, para a Vitória a Minas”. Ele seguiu o conselho, assinou o contrato em 1905 para trabalhar na EFVM. O livro publicado em 1959 é das memórias do jovem engenheiro de 26 anos de idade. Ceciliano era filho de São Mateus, município do norte do Espírito Santo. Assim, ao aceitar o trabalho, voltava para o estado natal, mas agora para as “brenhas do Rio Doce”, para abrir uma estrada de ferro no interior da selva. Nossa intenção é falar um pouco do livro “O desbravamento das selvas do Rio Doce”, para estimular sua leitura.

A obra está dividida em quatro partes: Reminiscências; Rio Doce; Bugres; Estrada de Ferro Vitória a Minas. O prefácio é de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), um dos mais renomados intelectuais e escritores brasileiros. Em “Reminiscências” estão as lembranças do tempo de menino em São Mateus, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, para realizar seus estudos. No capítulo “Rio Doce” temos um retrato da paisagem do que era rio Doce e suas margens no ano de 1905, entre Regência (foz do rio Doce) até Antônio Dias, acima de Ipatinga (rio Piracicaba). O autor narra a viagem no vapor, subindo o rio de Regência até o ponto final da navegação a vapor, próximo a Baixo Guandu, divisa com Minas Gerais. Descreve a flora, a fauna, citando as espécies pelos nomes populares e diferenciando a paisagem das duas margens do rio. A margem esquerda era ocupada inteiramente pela floresta virgem e índios, exceto o pequeno ponto que era a vila de Figueira (Governador Valadares). A margem direita estava mais modificada, porém, a ocupação humana era espaçada.

Ceciliano mostra como era difícil a navegação no rio e, desse modo, fornece como suas características nos vários trechos as pedras, corredeiras, cachoeiras, bancos de areias, ilhas etc. Naquele ano de 1905 ficamos sabendo quem vivia no rio Doce e navegava suas águas, os “canoeiros do Rio Doce”. Ele é um observador atento, pois distingue muito bem os locais de “mata virgem” das paisagens humanizadas: locais habitados, derrubadas, pastos, plantações e as capoeiras, indicando que o terreno fora abandonado pelo homem, nele voltando a crescer a mata. Ele mostra o quanto é diversa a paisagem e como a flora se modifica quando se afasta das margens do rio Doce. A paisagem depois do Porto de Souza (Baixo Guandu), Natividade (Aimorés) e cachoeira de Escadinha; as famosas pedras do Lorena, dos Cágados, do Resplendor e da Vaca; a serra da Onça e a cachoeira Santana. Ele também fornece um retrato das comunidades nascentes, tais como Linhares, Colatina e Figueira. Fala da visita de Dom Pedro II, que foi conhecer de perto o rio Doce, chegando a Linhares em fevereiro de 1860, pelo rio Doce, a bordo de uma canoa. Tem passagens divertidas, em que conta casos populares, preservando a linguagem dos ribeirinhos do rio Doce daquele tempo. São vários os temas tratados: a questão da navegação, os problemas da ocupação humana e, inclusive, os conflitos de limites com Minas Gerais.

A forma como Ceciliano conta sua história nos transporta para o passado, e viajamos com ele pelas “brenhas do Rio Doce”. Acompanhamos as mudanças do relevo por onde o rio passa, os afluentes, a desembocadura e as mudanças na paisagem depois de cada um dos afluentes, as características de cada trecho do rio, de suas inúmeras ilhas e da paisagem de suas margens, com as diferentes texturas da floresta e as muitas lagoas ao longo de toda a margem do rio. Encontramos algumas páginas sobre a vila de Figueira, seu aspecto e moradores, naquele ano de 1905. Ele dá um destaque especial ao cabo Antônio Máximo de Oliveira (pai do grande Serra Lima), comandante do destacamento militar de Dom Manoel, em Figueira. Ele mostra também que, apesar de a floresta dominar inteiramente a margem esquerda do rio Doce e toda a região ao norte, não havia a presença de índios depois de Figueira. A obra de Ceciliano, além do prazer que sua leitura desperta aos que gostam de histórias, permite conhecer a mentalidade da época, bem como serve de fonte para se mapear a paisagem do rio, a flora e a fauna. Sobre o restante do livro, vamos comentar em uma próxima oportunidade.


*Professor do Curso de Direito da Univale; Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT; Doutor em História pela USP.

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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