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Crônica em homenagem ao doutor Marcílio – o pernambucano de alma valadarense

Mauro Bomfim (*)

Ele nos ensinava a dizer não, sorrindo.

Pernambucano da boa cepa, seu espírito festivo e alegre foi certamente forjado na trepidante Recife do trevo e do maracatu, das tertúlias no mercado da Boa Vista.

Sua disciplina bismarckiana seguramente herdou daquele espírito que ainda impregnava o Recife de Maurício de Nassau, o rígido militar e conde germânico que foi contratado pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais para a conquista da colônia dos engenhos de açúcar. E conseguiu fazer maravilhas urbanísticas para a época: pontes, aquedutos, jardim botânico, uma transformação jamais vista.

E talvez veio daí, para o nosso personagem dessa crônica,  o gosto pela transformação e a obstinação da conquista.

E aportou o jovem médico pernambucano na planície tórrida do leste de Minas Gerais, onde ainda havia uma enorme bolha de endemias pairando no ar, depois de tantas missões do SESP, serviço de saúde criado nos anos 40 em Valadares por meio do esforço de guerra entre os governos norte-americano e brasileiro, para sanear nossa região onde a mica era abundante, mineral utilizado na fabricação de rádios de comunicação usados nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial.

Ser médico em Governador Valadares na época era lutar contra a doença e o mosquito. Mesmo com a derrubada das matas para usar madeira nos dormentes  da Estrada de Ferro Vitória Minas, aqui a floresta e o pântano eram o lócus do anofelino, o mosquito transmissor da malária que aqui atingiu mutações genéticas a tal ponto de torná-lo medonho e responsável por tantas mortes.  

 A chegada do médico era precedida como a de um santo.  Não havia nada, nem água potável, nem energia, nem saneamento básico. Era uma população doente. Impaludos, opilados,  portadores de febre amarela, de leishmaniose, de esquistossomose.

Jequitibás do Rio Doce caíam na tragédia de devastação das matas. E muitos homens fortes também caíam pela fragilidade de um mosquito.

A maneira de proceder com o doente indicava a presença de um homem de arte. Somados aos atributos da essência e da responsabilidade. Mas esse, nosso personagem, era um médico diferenciado. Pelas virtudes do coração, da inteligência e da sensibilidade.

No seu ambulatório e consultório de principiante, uma multidão de pobres, gente do povo, mas em cujo espírito pulsam talvez as melhores qualidade de nossa gente. Com paciência de santo e lucidez de um sábio, foi auscultando, examinando, manejando o bisturi, lancetando, costurando, estancando hemorragias.

É desse povo, desse vasto hospital humano, que tirou sua verdadeira lição. Médico independente, sem barreiras entre pacientes. Médico da rua, da paisagem urbana, do corredor do hospital, e da atmosfera do consultório. Médico e mestre da boa vontade, não tivesse ele o vezo de tratar seus amigos de “professor”, apertando os olhos num sorriso franco e aberto como só ele fazia.

Pioneiro do Hospital Municipal, comandando o Hospital são Vicente por muitas décadas, presidente da associação médica local, era natural que um humanista desse jaez fosse tangido pelos sortilégios da política. E assim se elegeu vereador por diversos mandatos, chegando à presidência da Câmara Municipal.

Peregrino e beneditino quando era para cuidar dos mais pobres e desvalidos. A dimensão de sua medicina social em Valadares, por dilatar todos os limites do imaginável, bem que merecia uma página do Guiness. Foram nada menos do que 30 mil cirurgias ao longo de décadas de uma devotada medicina social.

Sabeis, leitores, a quem me refiro.

O escritor italiano Carlos Lévi deixou escrita uma frase memorável numa escultura em Recife, a terra de nosso personagem. Ali escreveu: “O futuro tem um coração antigo”.

Ele nos deixa um coração antigo. Nos deixa um coração amigo. Nele, o traço marcante do velho médico convivia com a empolgação de um jovem. Seu frêmito contagiava o ambiente. Na roda de amigos, nos corredores de hospitais onde sempre era o primeiro a chegar para socorrer um amigo de nossos amigos. Nos círculos sociais e políticos, sempre sua presença era centelha de calor, a presença verdadeiramente espontânea de um amigo a comemorar nossos triunfos, a se compenetrar de nossos problemas, chorar nossas dores.

Não sei se me despeço do Dr. Marcílio evocando uma ode horaciana do “amanhã que tudo debilita e corrompe, ao tempo demolidor que tudo leva”, ou se recolho nas pálpebras como nos Anais de Tácito as “lágrimas estéreis sobre cinzas inanimadas”.

Marcílio Alves da Silva é para mim e para todos nós, mais uma estrela a cintilar no firmamento.


(*) Mauro Bomfim – advogado, jornalista e escritor – mb43712@gmail.com

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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