Fazem. E como fazem! O título acima é emprestado da composição do pernambucano Fred Zero Quatro, mente inquieta de criatividade especial à frente da banda Mundo Livre S/A. A faixa está no álbum “Da Lama ao Caos”, que é o primeiro registro de estúdio de Chico Science & Nação Zumbi, também de Pernambuco. Esse disco apresentou o movimento manguebeat para o Brasil e para o mundo nos anos 1990, tornou-se histórico e vive nas listas de momentos marcantes da nossa música. Voltando ao som que apresenta este artigo, sua letra aparentemente simples guarda muitas camadas.
“Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Computadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama”
Zero Quatro é mesmo genial. Ora, computadores fazem cada vez mais coisas. Fazem textos, mensagens de amor, fazem música. Computadores fazem design, casas, estradas! Eles podem criar slogans, conceitos, campanhas inteiras, para o desespero da já assustada comunidade de publicitários que se debate entre ansiedade, competição e tendências. Computadores fazem a gente acreditar no futuro e desconfiar dele. E Fred, muito irônico e perspicaz, sabe bem que artistas não necessariamente fazem dinheiro e nem levam a fama. A maioria esmagadora da classe faz o que pinta, faz o que pode. E leva pra casa o que der.
Nos últimos dias, quem ganhou muito mais fama do que já tinha foi o Studio Ghibli, uma espécie de entidade sagrada do universo da animação. Entre tantas contribuições que essa organização japonesa deu à humanidade, destaco “A Viagem de Chihiro”, um primor emocionante. Mas os computadores fazem muita arte! E eis que, numa dessas ironias do destino, um estúdio cuja filosofia e cujos valores defendem o desenho feito à mão, preconizam que haja o mínimo de interferências da tecnologia e valorizam a emoção humana no trabalho, esse estúdio, justo ele — e talvez seja ele exatamente por todos esses atributos — entrou em um hype sem precedentes de reproduções de base essencialmente tecnológica.
Porque cientistas criam o novo. E quando a nova atualização da ferramenta GPT-4o permitiu a geração de imagens pela descrição de textos, as coisas ficaram mais fáceis. Daí, alguém concebeu uma imagem a partir da estética Ghibli. E outro fez o mesmo. E mais um! E outras tantas. E a brincadeira virou trend. No início, eu mesmo achei tudo lindo e fofo. Mas a trend se transformou em uma oportunidade para discutirmos muita coisa. E agora eu sigo achando tudo lindo, mas nada fofo. Isso porque o estúdio japonês não gostou nem um pouco da brincadeira. Sentiu-se ofendido, lesado em seus propósitos, viu sua alma vilipendiada por uma onda que, aos olhos deles, não representa nada além da superfície.
Se os donos da estética se sentem ofendidos, eu estou com eles. Nada contra a tecnologia, nada contra o avanço dos computadores, nada contra os artistas que querem pegar carona. Mas se houver alguma tensão entre o que as máquinas produzem — a partir dos comandos de gente, registre-se — e o que os humanos sentem, estarei sempre ao lado de quem busca alguma forma mais saudável de estar no mundo. O pintor belga René Magritte, gênio surrealista, tem na obra “A Traição das Imagens” um questionamento fundamental. O quadro mostra um cachimbo e, logo abaixo, a sentença: “Isto não é um cachimbo”. Estamos vendo um cachimbo, o desenho de um cachimbo. Mas não, aquilo não é um cachimbo. Não é possível sentir. Não é possível fumar. Não tem como usar aquilo. A trend de Ghibli passa por aí. É “inspirada” em Ghibli. Presta “homenagem” a Ghibli. “Brinca” com Ghibli. Mas é contrária a tudo que Ghibli deseja, pois não passa de um lance efêmero da síndrome de FOMO.
O novíssimo e lindo álbum do Arnaldo Antunes traz na música “Novo Mundo” um alerta já conhecido, mas nem por isso menos pertinente: “Disparam sem parar nos olhos fixos/Os movimentos de milhões de pixels”. Disparam como balas perdidas, essas que conhecemos tanto e já normalizamos. Assim como normalizamos a miséria, a violência e os avanços tecnológicos que galopam e abandonam, no rastro de poeira, artistas e tantas outras classes. “Quanto pessimismo! É só uma brincadeira com desenhos animados”, é isso que muitos devem estar pensando. Espero estar enganado, mas é bom ilustrar que muitas das tragédias conhecidas pela humanidade nasceram como simples “brincadeiras”.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível.
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