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Autossabotagem: uma visão psicanalítica

Clara é uma jovem de 25 anos e está em seu terceiro relacionamento de longo prazo. Guilherme, seu atual namorado, a humilha na frente dos amigos, não aceita ser contrariado em hipótese alguma e, em algumas brigas, quase chega a agredir fisicamente a parceira. Curiosamente, os dois primeiros namorados de Clara tinham um padrão de comportamento muito semelhante. As amigas dizem que a moça sofre de “dedo podre”, pois só se relaciona com homens que inicialmente parecem príncipes encantados, mas acabam se revelando sádicos abusivos.

Pedro, 35 anos, é engenheiro civil. Sempre muito estudioso, era o aluno que tirava as maiores notas tanto na escola quanto na universidade. Embora não tivesse uma paixão pela Engenharia, decidiu seguir essa carreira por recomendação do pai que trabalhava como mestre de obras e sempre nutriu um verdadeiro fascínio pela profissão de engenheiro. “Na minha época, pobre não tinha oportunidade de fazer faculdade, meu filho. Se tivesse, hoje você seria filho de engenheiro.” era o que o pai costumava dizer a Pedro na época do vestibular. Hoje, apesar de ter se formado com louvor, o rapaz não consegue prosperar na profissão. Tentou alguns concursos públicos, mas, procrastinando o estudo para as provas, nunca conseguiu ser aprovado. Depois de passagens rápidas por duas grandes construtoras, nas quais, segundo ele, “não conseguiu se adaptar”, Pedro decidiu trabalhar por conta própria, mas sofre para conseguir novos projetos.

O que Clara e Pedro têm em comum? Ambos vivenciam o fenômeno que nos acostumamos a chamar de “autossabotagem”. Aparentemente eles agem de uma forma que acaba produzindo resultados prejudiciais para si mesmos, como se inconscientemente estivessem trabalhando contra os próprios interesses.

É óbvio que Clara não deseja conscientemente ser humilhada, dominada e violentada psicologicamente. Se as amigas lhe perguntassem qual seria o modelo de relacionamento no qual ela gostaria de estar, certamente ela falaria de um no qual fosse respeitada e valorizada pelo parceiro. Por que será, então, que Clara acaba se envolvendo justamente com homens que a tratam de maneira oposta a essa?

Pedro, por sua vez, indubitavelmente diria, num processo de coaching, por exemplo, que seu maior objetivo profissional é se tornar um engenheiro bem-sucedido. Com um retrospectivo acadêmico invejável, ele de fato possui o potencial necessário para alcançar esse propósito. Mas, então, por que será que Pedro desperdiça todas as oportunidades que surgem em seu caminho para fazer isso acontecer? Por que será que ele não estuda para os concursos, não se esforça para crescer nas empresas em que trabalha ou conquistar novos clientes agora que trabalha sozinho?

A explicação mais comum para esses fenômenos de autossabotagem é a de que tais pessoas estão sendo vítimas de “travas mentais” ou “crenças limitantes” que as impedem de alcançarem os objetivos que desejam. Do ponto de vista psicanalítico, esse raciocínio não se sustenta porque ele parte do pressuposto de que aquilo que nós dizemos que queremos é o que DE FATOdesejamos.

Não entendeu? Voltemos aos nossos exemplos: quando dizemos que Clara e Pedro sofrem de “crenças limitantes”, estamos pressupondo que eles realmente querem um relacionamento feliz e sucesso na engenharia, respectivamente. Uai, Lucas, e isso não é verdade? Não necessariamente… Parafraseando o jovem gadareno, todos nós somos constituídos por uma legião de desejos, muitos dos quais são contraditórios entre si.

Clara de fato deseja um relacionamento feliz, no qual seja respeitada, valorizada e amada. Quem não desejaria isso? No entanto, ela TAMBÉM pode nutrir um desejo ainda mais forte de continuar vendo seu pai como o único homem da sua vida, com quem ela até se casaria se não fosse filha dele. Ora, vamos combinar que, para satisfazer esse segundo desejo, Clara simplesmente NÃO PODE ter um relacionamento feliz. Afinal, isso implicaria colocar outro homem NO LUGAR DO PAI. Os namorados abusivos a deixam infeliz e humilhada, mas, em compensação, estão longe de ameaçarem o status de homem ideal que o pai ocupa e que, se depender de Clara, PRECISA continuar ocupando.

Vejamos, agora, o que acontece com Pedro. Sim, ele deseja ser um engenheiro de sucesso. Mas será que esse desejo é dele mesmo ou de seu pai? De fato, durante toda a infância e adolescência, esse rapaz desejou ser dentista, mas sua submissão à figura paterna era tão intensa que ele não teve dificuldades para sufocar o desejo pela Odontologia e assumir o fascínio do pai pela Engenharia Civil. Portanto, não é surpreendente constatar que Pedro não seja próspero na sua carreira como engenheiro. Com efeito, não era essa a profissão que ele espontaneamente gostaria de estar exercendo.

Entendeu? O que está em jogo na autossabotagem de Clara e de Pedro não é a ação de “crenças limitantes” ou qualquer coisa semelhante a isso. Na verdade, ambos estão sendo vítimas da falta de conhecimento acerca dos desejos que neles estão presentes em estado inconsciente. Dito de forma mais simples: Clara quer conscientemente um relacionamento feliz, mas INCONSCIENTEMENTE não deseja isso. Pedro, por sua vez, deseja estar na profissão de engenheiro para satisfazer o pai, mas INCONSCIENTEMENTE gostaria de estar em outra carreira.

Se Clara e Pedro se dispuserem a fazer Psicanálise, é bem provável que conseguissem reconhecer esses desejos inconscientes e, por meio dessa constatação, encontrariam formas menos sofridas de satisfazê-los. A gente para de se autossabotar quando se dispõe a entender o que de fato desejamos para-além do que queremos.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogoclínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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