Antes de doar um caderno antigo, ainda com páginas em branco, para a sobrinha treinar a grafia das primeiras palavras e seus dotes de desenhista iniciante, eu o folheei sem qualquer pretensão. Sobreviveu da época da minha primeira pós-graduação, em Revisão de Textos, há um tempinho. As anotações reviveram memórias bem satisfatórias do curso mais prazeroso que eu já fiz. No final, a última página guardava um pequeno tesouro perdido: uma crônica, escrita à mão, intitulada “Atratividade”.
A letra não deixa dúvida: o texto é meu. Alguns rabiscos, umas palavras que não dá para ler direito, outras riscadas (inclusive uma primeira proposta de título), uma frase inteira cortada — tudo bem artesanal. Não me lembrava mais daquele conteúdo, nem de já ter, alguma vez na vida, escrito uma crônica inteira assim, à caneta. O caderno foi cumprir seu novo propósito, menos aquela folha, arrancada sem muito cuidado e guardada isolada em uma gaveta.
O texto é romântico, bonitinho. Versa sobre a atração entre um casal se conhecendo. O cara se apaixona por um sorriso; a menina, por um olhar. É possível que tenha sido inspirado em — ou criado para ser lido por — uma pessoa específica, que eu não consigo mais cravar quem. Ou nada disso; pode ser absolutamente ficcional, crônicas têm dessas coisas.
A pós durou entre 2013 e 2015 e, até por aquelas palavras terem sido cunhadas no final do caderno, não dá para saber exatamente quando, nesse intervalo. Nem mesmo se nasceram durante o curso, entre uma e outra aula, ou depois do diploma.
Pensei em publicar. Ou melhor: em escrever sobre aquele texto. Até que procurei a tal folha e ela simplesmente sumiu. Tirei tudo da gaveta onde ela repousava, e de todas as outras do mesmo móvel, abri envelopes e… nada. Pelo menos serviu para uma limpeza daquelas que a gente procrastina enquanto pode. Só me restava escrever sobre uma crônica, inspirada em outro texto de mais ou menos uma década antes, mas que nunca foi escrita. Muito confuso. Restou também questionar minha sanidade: aquele papel existiu mesmo?
Depois de conferir infinitas vezes, uma lampadazinha acendeu aqui, com uma última ideia, antes de abandonar de vez esse projeto: retirar as próprias gavetas. Deu um trabalhinho, mas funcionou. Lá no fundo do móvel jazia uma folha velha, rabiscada, com a “Atratividade” original.
Reli os sete parágrafos. No último, o grand finale: o olho do rapaz brilhava quando enxergava a boca da moça, e o sorriso dela se abria mais quando os olhos dele pousavam sobre seus lábios. Bobinho, eu sei, mas talvez, em algum contexto, pudesse ter feito sentido e tido o seu valor.
Aquela crônica não foi — e provavelmente nunca será — publicada em lugar nenhum. Se ela surgiu mesmo baseada em alguma história real, o negócio também não vingou — pelo menos não para a eternidade. Então está tudo certo. Consciência e gavetas limpas.
(*) Mineiro, jornalista e mochileiro.
Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.
Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.
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