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A Síndrome do Aluno Nota 10

Lucas Nápoli (*)

Além de atuar como psicanalista em consultório particular, também sou servidor público federal na Universidade Federal de Juiz de Fora (Campus Governador Valadares), onde exerço o cargo de psicólogo. Dentre outras atividades, meu trabalho naquela instituição consiste basicamente em prestar atendimento psicológico individual aos estudantes de graduação do campus. Por que estou lhe contando isso, caro leitor? Porque essa experiência profissional foi fundamental para que eu pudesse identificar um padrão psicopatológico que acredito não ter sido ainda descrito na literatura científica. Trata-se de um quadro doentio que, na falta de nome melhor, ousei denominar provisoriamente de “Síndrome do Aluno Nota 10”.

Dentre os diversos traços que caracterizam essa síndrome, podemos citar:  perfeccionismo, dificuldade para delegar tarefas, dificuldade para recusar demandas e oportunidades, excesso de tensão emocional, preocupação exacerbada com a própria reputação e alto nível de ansiedade de desempenho. Pessoas que sofrem com essa síndrome também experimentam com frequência a sensação que está na base de outro quadro patológico, a chamada “Síndrome do Impostor”. Com efeito, tais indivíduos amiúde se veem assaltados pela preocupação absolutamente imaginária de que, a qualquer momento, serão “desmascarados” e as pessoas finalmente se darão conta de que eles não são de fato competentes como aparentam ser.

A gênese da Síndrome do Aluno Nota 10, como o próprio nome indica, está relacionada a circunstâncias específicas que costumam estar presentes na história de vida de pessoas que desde o início da vida acadêmica sempre obtiveram sucesso e alta performance. Estou me referindo, por exemplo, àquele garoto que sempre tirou boas notas, considerado muito inteligente pelos colegas e professores, frequentemente citado como exemplo de comportamento e desempenho e que jamais recebeu bronca de nenhum docente. Refiro-me também àquela moça quietinha, que nunca “deu trabalho” para os pais, sempre considerada a primeira da classe, que tinha o caderno extremamente organizado, à qual todos vinham “consultar” às vésperas das provas.

O que acontece com garotos e moças como esses que citei, sobretudo durante a vida escolar? Inadvertidamente, eles são privados de passar por experiências que são fundamentais para a construção da saúde mental: as experiências de fracassar e de ser criticado. Na infância e na adolescência, mesmo quando eventualmente não conseguem obter um desempenho satisfatório ou cometem alguma infração, tais pessoas costumam ser poupadas de críticas. De fato, já construíram uma imagem de perfeição tão consistente que eventuais erros passam a ser automaticamente perdoados por aqueles que estão à sua volta. Nesse sentido, vivem como se estivessem sempre correspondendo à imagem idealizada que os outros possuem acerca delas. Com o tempo, tais crianças e adolescentes começam não só a usufruir do prazer de saber que são estimados pelos adultos, mas a ter medo de perder a condição de “perfeitinhos”, de alunos nota 10. Eles se tornam reféns da própria imagem que projetaram simplesmente por fazerem exatamente aquilo que os adultos queriam que fizessem. Não raro, começam, inclusive, a invejar a liberdade que os “bagunceiros” da turma possuem de não precisarem atender às expectativas dos professores.

A experiência de serem o tempo todo louvados e elogiados pelo bom comportamento que apresentam e pelo desempenho acadêmico de excelência está na origem de alguns dos traços mais característicos da Síndrome do Aluno Nota 10. Com efeito, pouco habituados a fracassos e críticas, os indivíduos que sofrem dessa síndrome estabelecem para si mesmos metas de desempenho elevadíssimas, impossíveis de serem atingidas o tempo todo na vida. O fato de raramente (ou mesmo nunca!) terem falhado e sido criticados na infância e na adolescência leva tais pessoas a imaginarem que precisam e podem ser excelentes em todas as esferas da vida, esquecendo-se de que a existência é muito mais ampla, variada e complexa que uma sala de aula.

Eis uma boa forma de caracterizar a etiologia da Síndrome do Aluno Nota 10: uma fixação no mundo escolar. O sujeito sofre por tentar lidar com a vida de forma geral utilizando o mesmo padrão mental, relacional e comportamental em que vivia na época da escola. Apesar de não estar mais em uma sala de aula, ele continua achando que precisa estar o tempo todo tirando nota boa e obedecendo aos professores.

É por isso que pessoas que estão nessa condição têm dificuldade para dizer não. Como se mantêm fixadas na memória da vida escolar, continuando encarando a vida sob a batuta da obediência: se alguém lhe pede para fazer algo, elas não podem recusar, pois um bom aluno jamais deixa de fazer uma tarefa que lhe é solicitada. É também o apego doentio à imagem idealizada de aluno nota 10 que leva o sujeito a ficar o tempo todo tenso, com ansiedade generalizada. Ele fica se perguntando ininterruptamente se está fazendo tudo corretamente, pois agora não há um boletim ao final de cada bimestre para lhe garantir que continua sendo um bom aluno. As preocupações, portanto, representam seu esforço para certificar-se de que ainda é o “perfeitinho”.

Esta foi apenas uma primeira apresentação dessa síndrome. Por seu caráter preliminar, de forma alguma pretende ser uma caracterização completa do quadro. Ainda restam muitas características a serem exploradas e compreendidas e lacunas a serem preenchidas. Espero, contudo, ter conseguido apresentar um vislumbre satisfatório dessa condição que afeta muitas pessoas e que até o momento parecia ignorada pela literatura.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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