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Vale do Rio Doce: cancelado da memória e da história

por Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola*

Na década de 1940, para atender aos diversos interesses e finalidades do governo federal, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, criado em 29 de maio de 1936, dividiu o Brasil em regiões geográficas. Em 1970 e 1976, respectivamente, o IBGE dividiu os estados brasileiros em microrregiões e mesorregiões, com o objetivo de levantar dados e produzir as informações sobre o território brasileiro, sua população e economia. Assim, criou-se a Mesorregião do Vale do Rio Doce, que reuniu 102 municípios, divididos em sete microrregiões: Aimorés (com 13 municípios), Caratinga (com 20), Guanhães (com 15), Ipatinga (com 13), Governador Valadares (com 25), Mantena (com sete) e Peçanha (com nove municípios). Em 2017, o IBGE apresentou a nova regionalização, substituindo os termos Mesorregião e Microrregião por Região Geográfica Intermediária (RGInt) e Região Geográfica Imediata, respectivamente, promovendo várias alterações.

A mudança seguiu critérios técnicos e essa nova divisão regional tende a ser também adotada pelos governos estaduais e incorporada pelos pesquisadores, nas universidades. Com a mudança, a Mesorregião do Vale do Rio Doce deixou de existir, dando lugar a duas regiões geográficas intermediárias: a RGInt de Governador Valadares e a RGInt de Ipatinga. Outra mudança importante foi desvincular a região de Caratinga de Governador Valadares, pois na nova divisão a Região Geográfica Imediata de Caratinga passou a integrar a RGInt de Ipatinga. Também alterou a vinculação de municípios, tais como Pocrane, Mutum, Ipanema, Conceição de Ipanema, que pertenciam à Mesorregião do Vale do Rio Doce, mas que agora pertencem a RGInt de Juiz de Fora.

Essa mudança, por demasiado técnica, tem consequências que exigem nossa reflexão. A nova regionalização, ao suprimir o termo Vale do Rio Doce, apaga a história e enterra junto, no esquecimento, todo um passivo socioeconômico e socioambiental.

Nos séculos XIX e XX, a referência sempre foi o Rio Doce e o Vale do Rio Doce, identificando sua importância. Nas décadas de 1940 e 1950, não foram poucos aqueles que disseram que o Vale do Rio Doce era estratégico para a redenção nacional, ou seja, a importância do Vale do Rio Doce para a modernização e industrialização do Brasil ganhou dimensão acentuada. Prova disso é a manchete do jornal “A Noite”, em 29 de abril de 1946, na página 9: “Mais do que o Vale das Maravilhas, o Vale do Rio Doce será o Vale da Redenção da Economia Brasileira”. “A Noite” foi um importante jornal diário publicado no Rio de Janeiro, capital do Brasil, que circulou entre 1911 e 1957.

Entretanto, em 22 de maio de 2009, a Companhia Vale do Rio Doce, privatizada em 6 de maio de 1997, retirou do seu nome o Rio Doce, ficando apenas “Vale S.A.”. Agora o IBGE retira o nome do Vale do Rio Doce e, além de apagar o nome, subdivide e fragmenta a região que historicamente se identificava como Vale do Rio Doce, ou seja, um território que se constituiu a partir do Rio Doce e dos recursos naturais da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. Por fim, o desastre-crime da Vale/BHP/Samarco retira do próprio rio o Doce, deixando no lugar um rio Amargo.

Isso não é pouca coisa para se refletir. Nós, que aqui nascemos e/ou vivemos, não podemos esquecer, como querem, que levaram e estão levando nosso minério (mica, ferro, ouro etc.), deixando buracos onde havia montes; que levaram nossas florestas, transformando-as em carvão para as siderúrgicas e aço para o Brasil; que levaram nossas madeiras de lei, transformando nosso jacarandá em móveis de luxo, no velho continente europeu; levaram nosso solo, na forma de boi gordo, para alimentar as grandes cidades industriais. Depois de levarem tantas coisas, deixando muito pouco, além de barragens que podem se romper a qualquer momento, passaram a levar nossa gente, que sem poder ficar aqui, foi obrigada a migrar para outros estados e para o exterior.

Quando se cancela o nome Vale do Rio Doce se retira toda a história, e ficamos privados dela, das nossas memórias e de nossa identidade, de nosso lugar, de nós mesmos. Por esse motivo é que apenas parece uma questão técnica, mas, ao retirar a referência ao nome Rio Doce e ao Vale do Rio Doce, apaga-se o passado recente e tudo que ele permite explicar, retirando-nos, também, a capacidade de reação e de defesa dos nossos direitos. Assim, fracos e sem identidade histórica e regional, não temos força para cobrar o passivo dessa dívida que se acumulou durante o século XX e prossegue hoje, principalmente depois do desastre provocado pele Vale/BHP/Samarco. Ficamos sem visão de conjunto e sem visão de futuro; ficamos com as dívidas, os impactos negativos e nada mais. Não podemos nos esquecer que ficaremos também, na conta do passivo ambiental, com dezenas de barragens como a de Fundão, que uma hora ou outra podem derramar seus rejeitos sobre nossos rios, sobre nossa população.

Caro leitor, região e regionalizar não são uma questão somente técnica. Claude Raffestin, um professor de Geografia da Universidade de Genebra (Suíça), ensina que o ato governamental de regionalizar é um ato de poder que atende a intenções e interesses que são externos, ou seja, que são de fora. Ele explica que regionalizar é a ação do governo para estabelecer o melhor recorte geográfico no sentido de atender os interesses do poder central, ou seja, para planejar, executar, ordenar e gerir a população, os recursos e tudo o mais que forma o território. Nas palavras do geógrafo suíço: “A região não está ausente das preocupações do Estado, ao contrário: ele corta, subdivide, delimita, quadricula, encerra…”, fazendo isso a partir dos interesses e “conforme as necessidades do poder central”. No século XX, o projeto nacional foi a modernização e industrialização do Brasil e, nesse contexto, a manchete do jornal “A Noite” sintetizou bem qual papel deveria caber ao Vale do Rio Doce: “Mais do que o Vale das Maravilhas”, deveria se tornar o “Vale da Redenção da Economia Brasileira”.

Porém, agora, sem serventia, o termo Vale do Rio Doce é cancelado: retirado do nome da Companhia, retirado da divisão geográfica do Brasil; até o doce do rio foi retirado, apagando-se tudo isso da memória.

As novas regiões geográficas estabelecidas tecnicamente “perfeitas” dão a impressão de que existe diversidade, mas, ao suprimir nomes como Vale do Rio Doce, Vale do Jequitinhonha, entre outros, mata-se a identidade, a unidade e a força política local, mantendo a impressão de que existe diversidade, quando na verdade se impõe a uniformidade dos interesses que verdadeiramente mandam e contam no Brasil. Então, convido todos para refletirmos juntos,  já passados seis anos em que vivenciamos o desastre-crime da Vale/BHP/Samarco, iniciado naquele fatídico dia 5 de novembro de 2015. As ações e movimentos de todos os atores, independentemente do lado em que se encontram, têm sido fragmentados, pois falta ação de conjunto e compreensão da totalidade que é o Vale do Rio Doce. Esse nome, que agora vai se apagando gradativamente, durante dois séculos nomeou a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, primeiro como o “Vale das Maravilhas”, depois como o “Vale da Redenção da Economia Brasileira”. O que fazer? Como fazer? Qual bússola nos guiará para um outro futuro? Essas são questões que somente podem ser enfrentadas se houver unidade, compreensão de conjunto e visão de futuro.


*Professor do Curso de Direito da Univale; professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT; doutor em História pela USP.

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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