Bob Villela (*)
Dia desses, o açude de Marechal Dutra, mais conhecido como Gargalheiras, transbordou. “Sangrou”, como eles dizem em nosso Nordeste mágico. O manancial fica no Rio Grande do Norte e foi cenário do filme “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, que trata de absurdos brasileiros com a secura como eles devem ser tratados. Havia 13 anos que o copo não ficava tão cheio por lá. Por isso, houve vigília para aguardar o extrapolar da água sobre os limites da engenharia e da esperança. Houve festa, como ocorre na veia do nordestino e de todo brasileiro que vive entre a aridez e a correnteza.
Parece ser assim em muitos aspectos por aqui. Ou o povo está queimado de sol e ardendo no desconforto dos equipamentos que movimentam a rotina, ou está encharcado pelas tempestades que fazem a água vir do céu e do chão. Secos ou molhados, temos nosso sangue latino mantido em desconcertante banho-maria. Secos & Molhados, lendária banda que abrilhantou as bandas de cá do mapa, fala, em “Tercer Mundo”, do homem que é “véspera de si mesmo”. Sempre em dia com seu tempo, Kleber Mendonça é especialista em demonstrar as vésperas, aquilo que está prestes a se realizar, mas não se realiza do jeito certo; ou só transborda para causar estrago, só sangra para causar dor.
O cinema de Mendonça — e também o de outros cineastas de Pernambuco ou o da produtora mineira Filmes de Plástico, só para citar alguns — exibe, antes de um compromisso com o êxito comercial, uma vocação para a crítica que leva ao esclarecimento. O banho ali é de realidade, quando mergulhamos em um açude ético que guarda muitos brasis. Eles produzem como quem está em constante oposição à indiferença e à colonização estética. A famosa frase do gênio Millôr Fernandes — “A imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados” — é a cara dessa turma de realizadores do nosso audiovisual.
Um armazém de secos e molhados é aquela vendinha antiga onde se tem de tudo um pouco — ainda presente, especialmente, em pequenas cidades ou nas bordas das metrópoles. A linha de costura, a cachaça, a mortadela, a galocha, o cigarro, a caderneta dos fiados… A confiança, enfim. Amenidades, afeto, jeitinho e sorrisos. Recentemente, vi um exemplar desse estabelecimento no Serro/MG. Fiquei muito encantado. Após meros cinco minutos de permanência, saí de lá quase amigo do dono. Foi lindo! Mas é exatamente isso que a imprensa não pode ser. Ainda bem que tivemos Millôr. E ainda bem que há gente com tanta disposição para escancarar nossas longas contradições em metros de rolo de fita.
Além de gênio, Millôr Fernandes foi jornalista, cartunista, carismático e amigo do Ziraldo. Sinto que a maior oposição que esses caras empreenderam foi contra a mesmice, ou contra o marasmo. Produziram muito, e por tempo demais. Deixaram um legado de obras consagradas e um vasto acervo de obras-primas que ainda serão descobertas, mesmo que já sejam bastante difundidas. E seus nomes, seus feitos e seus defeitos serão celebrados até em silêncio, já que foi a turma deles que fez sangrar o açude criativo de muita gente que, por sua vez, inspirou outra gente que tornou-se referência da gente de hoje.
Jamais vou me esquecer de quando li “Fábulas Fabulosas”, do Millôr, ou “O Menino Maluquinho”, do Ziraldo. É de sangrar a alma de felicidade constatar, diariamente, as infinitas possibilidades da nossa cultura. Claro que há um árido, um pântano, um espaço sempre arredio à lucidez que poderíamos alcançar como nação. Só que tem sempre um traço, uma cor, um filme e um sentimento em vigília, pingando aqui e ali. Até um dia transbordar o encanto em fato ético e estético. Quando chegar esse dia, seguiremos sendo bem menos do que foram os nossos ídolos. Mas, finalmente, deixaremos de ser véspera de nós mesmos.
(*) Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.