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Um Volkswagen Fusca e um Fiat Idea

FOTO: Reprodução/Instagram

O ano é 2025. Vamos para o mês de abril.

No dia 21, feriado nacional em uma segunda-feira, celebração de Tiradentes e de uma folga no dia mais temido por boa parte da classe trabalhadora, o mundo é informado sobre o falecimento do Papa Francisco. Um dos pontífices mais simpáticos e coerentes de que se tem notícia, o argentino Jorge Mario Bergoglio foi um craque. Atencioso, arrojado, humilde e trabalhador, pregava a simplicidade, o despojamento. Viveu a obra e a utopia de uma atuação afastada de luxos e conectada com as aflições do povo, sem importar a religião ou o que quer que fosse. Abriu mão de muitos privilégios porque sabia que eles são uma armadilha que afasta o homem público de um propósito maior. Ele nos deixou aos 88 anos.

Pulamos para maio.

No dia 13, um não feriado nacional em uma terça-feira, dia oficial da abolição da escravatura no Brasil — e para refletir sobre como isso se deu —, o mundo é informado sobre o falecimento do Pepe Mujica. Um dos governantes mais simpáticos e coerentes de que se tem notícia, o uruguaio José Alberto Mujica Cordano foi um craque. Atencioso, arrojado, humilde e trabalhador, pregava a simplicidade, o despojamento. Viveu a obra e a utopia de uma atuação afastada de luxos e conectada com as aflições do povo, sem importar a religião ou o que quer que fosse. Abriu mão de muitos privilégios porque sabia que eles são uma armadilha que afasta o homem público de um propósito maior. Ele nos deixou aos 89 anos.

Dois homens idosos. Com idades próximas, de países vizinhos, reconhecidos e repercutidos mundo afora muito mais por seus atos do que por seus cargos. Duas almas latinas ensinando à humanidade que viver e fazer política é essencialmente sobre amor, empatia, solidariedade e renúncia. Ambos, quando falavam, eram poetas de um tempo que parece se esvair. Versavam tolerância quando a ocasião exalava truculência; carinho quando o momento sugeria maldade; pragmatismo quando a situação era confusa; coragem quando o caminho oferecia terror. E a vida quer é coragem mesmo, já ensinou nosso Guimarães Rosa, um dos cardeais mais destacados da literatura nacional.

Um Pepe. Um Papa. Atravessaram veredas de inúmeros desafios e caminharam por sertões de incongruências com fé inabalável.

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo

Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo

Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar, faca amolada

Irmão, irmã, irmã, irmão de fé, faca amolada.

Como na letra potente e cortante de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, o argentino e o uruguaio permitiram-se ter o brilho sem abrir mão de alguma tranquilidade. A fé, a faca, o Pepe, o Papa e a postura intacta.

É bastante conhecida a ocasião em que Francisco, em sua visita ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, teve à sua escolha os carros top de linha da Fiat para seus deslocamentos. As opções eram os modelos Linea, Bravo ou Freemont. Mas o pontífice fez um pedido pouco convencional para um líder tão visado quanto ele em um país com a terrível fama — infelizmente, justificada — de ser tão violento. Ele pediu um automóvel mais simples, sem blindagem, sem itens de luxo, para que pudesse ficar mais próximo do povo, em todos os sentidos. A Fiat correu e conseguiu um modelo Idea em uma locadora. Hoje o carro é uma relíquia — bem menos valiosa que o nobre gesto do Papa.

É bastante conhecida a relação de Mujica com seu Fusca azul. Um modelo 1987, valente e austero. Conforme preconiza o saudoso teórico da comunicação Marshall McLuhan, o ex-presidente — com ajuda da imprensa e dos admiradores — fez do carro uma perfeita extensão de sua ideologia. Ironia do destino: Se era difícil explicar ao mundo sua forma de ver e viver a vida, um ícone da poderosa indústria automobilística veio a ser a metáfora ideal para conduzir a retidão, a humildade e a integridade de quem não apenas difundia valores, mas os praticava diariamente. Hoje, o carro é uma relíquia — bem menos valiosa que os nobres gestos do Pepe.

É controverso e acalentador pensar que a mesma Itália que foi berço do fascismo e a mesma Alemanha que pariu o nazismo sejam

as terras de marcas cujos produtos ajudaram a forjar momentos históricos associados à comunhão, à proximidade, à simplicidade. Ao mesmo tempo, a luz de alerta do mundo acende quando olhamos em volta, nas telas ubíquas, e vemos menos Franciscos e Mujicas do que gostaríamos. São tempos exacerbados, produzindo gerações de líderes reborn em um cenário que beira à saturação. Mas ninguém abre mão do simulacro de uma vida bem-sucedida e confortável. A mesma vida que nos tira o precioso tempo para vivê-la. Desejo, por mais Ideas e Fuscas e menos ideias que ofuscam nossa existência: “O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”.


(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível.

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