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Um criminoso preso pode ser mais livre que você

Dr. Lucas Nápoli (*)

Acostumamo-nos a pensar que no mundo contemporâneo somos mais livres do que jamais fomos. Pelo menos no lado ocidental da Terra, não temos mais a obrigação de aderir a uma religião específica, podemos expressar livremente nossas inclinações eróticas tanto pelo sexo oposto quanto pelo mesmo sexo, temos meios que nos permitem viajar para os mais recônditos lugares do planeta, podemos emitir nossas opiniões e visões de mundo através de inúmeras ferramentas, enfim… São muitos os exemplos que podemos citar para evidenciar que gozamos hoje de um grau de liberdade jamais visto ao longo da história.

Será mesmo? Será que todas essas possibilidades elencadas acima denotam que de fato hoje somos mais livres do que éramos no século XIII, por exemplo? É possível problematizar essa ideia se levarmos em conta alguns dos efeitos colaterais das diversas conquistas obtidas pelo mundo liberal em que vivemos.

Por exemplo, atualmente não somos mais reféns de bibliotecas físicas para a busca de informação. Recordo-me de que, em minha época de estudante de Ensino Fundamental e Ensino Médio, precisávamos ir à Biblioteca Municipal para obter material de referência para a elaboração dos trabalhos escolares. Hoje, qualquer criança de primeiro ano é capaz de acessar o Google e encontrar qualquer informação que precisar.

É inegável que se trata de uma conquista fantástica essa possibilidade de ter acesso à toda a informação disponível no mundo sem sair de casa. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que essa facilidade tornou grande parte das pessoas dependente das ferramentas de busca. Por exemplo, muitos estudantes universitários atualmente não conseguem elaborar um trabalho acadêmico que não seja meramente uma colagem de textos obtidos a partir de uma busca no Google. Em muita gente a facilidade de acesso à informação atrofiou as habilidades de refletir, analisar e sintetizar, as quais eram inevitavelmente reforçadas quando se tinha mais trabalho para obter material de referência.

Além disso, não podemos deixar de mencionar o fato de que, em contrapartida ao oferecimento de acesso facilitado à informação, plataformas como Google e Facebook coletam uma série de dados pessoais dos usuários. Em outras palavras, ganhamos acesso à informação às custas de nossa privacidade. Atualmente, é extremamente fácil para os órgãos governamentais de qualquer país descobrirem a localização de um indivíduo graças à quantidade imensa de informações pessoais que o próprio sujeito fornece às plataformas digitais direta e indiretamente. Um senhor feudal na Idade Média não teria tamanha facilidade para encontrar seus súditos… Nesse sentido, podemos nos perguntar: somos de fato mais livres do que nossos antepassados?

A inspiração para a escrita deste artigo veio de um aforismo do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) intitulado “Meu conceito de liberdade” e que se encontra no livro “Crepúsculo dos Ídolos” (1888). Nesse pequeno texto, Nietzsche defende uma tese à primeira vista bastante curiosa: a de que a liberdade verdadeira só se manifesta diante de situações que apresentam obstáculos e resistências àquilo que o indivíduo (ou um povo) almeja. Nesse sentido, poderíamos dizer que, por exemplo, as mulheres que lutaram em décadas passadas pelo direito ao voto e os direitos civis eram mais livres do que as jovens que vivem hoje numa realidade onde tais direitos já foram conquistados.

Para Nietzsche, as conquistas obtidas a partir de um processo de confrontação e conflito criam uma situação confortável que, por sua vez, torna as pessoas mais fracas, dependentes e, portanto, menos livres. Afinal, para o autor, o grau de liberdade de uma pessoa não se mede pela quantidade de coisas que ela pode fazer, mas pela quantidade de coisas que ela pode suportar e às quais ela pode renunciar. Certamente uma mulher da década de 1930 lutando pelo direito ao voto conseguiria viver na realidade contemporânea com todas as suas facilidades e direitos femininos garantidos, mas será que uma jovem do século XXI conseguiria suportar todas as dificuldades presentes na vida das mulheres no início do século XX?

Nas palavras de Nietzsche, “Liberdade significa que os instintos viris, que se deleitam na guerra e na vitória, predominam sobre outros instintos, os da ‘felicidade’, por exemplo”. Ao falar de “instintos viris”, o autor não está se referindo a disposições que estariam presentes apenas em homens, mas a tendências inerentes a todo ser humano e que se manifestam por meio do gosto pelo combate e pela vitória. São eles, os “instintos viris”, que se expressam quando zoamos um amigo quando nosso time venceu o dele. Para Nietzsche, tais instintos evidenciam a tendência mais intrínseca do humano que é a vontade de expansão e de crescimento. Quando nos entregamos a essa vontade, tornamo-nos capazes de suportar qualquer desconforto e abrir mão de toda tranquilidade em nome da conquista e da vitória (pense num atleta de alta performance, por exemplo). Ou seja, a gente se torna livre quando decide renunciar ao “instinto de felicidade”, que também habita as almas de todos nós. O instinto de felicidade nos leva a buscar a paz, o conforto, a tranquilidade, a harmonia. O problema é que todas essas coisas trazem consigo dependência e enfraquecimento. Não tenho dúvidas de que um criminoso preso e que precisa lutar diariamente para sobreviver na cadeia é muito mais livre do que um millenial que tem uma crise de ansiedade sempre que seu celular estraga.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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