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Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC): exorcizando os próprios pensamentos

Dr. Lucas Nápoli (*)

Nos últimos quatro meses, Bernardo está trabalhando em regime de home-office. Na última quinta-feira, Luana, sua esposa, resolveu dar uma grande faxina em toda a casa, incluindo o quartinho dos fundos, que o marido tem utilizado como seu escritório. Ao chegar em casa após ter ido ao supermercado fazer as compras da semana, Bernardo observa que sua mesa de trabalho no quartinho dos fundos estava totalmente vazia. Luana havia guardado todos os equipamentos e materiais que ele costumava deixar dispersos por ali. Irritado, o marido foi logo tratando de recolocar todos os objetos de volta sobre a mesa, dispondo-os do exatamente do mesmo modo em que eles se encontravam antes da faxina da esposa. Ao perceber que Bernardo estava fazendo isso, Luana ficou indignada: “Que absurdo! Eu acabei de arrumar essa mesa! Por que você está bagunçando tudo novamente?”. O marido respondeu: “Não é bagunça. Só consigo trabalhar assim!”. Apesar de ainda estar irritada, a esposa decide abandonar a discussão e sai falando consigo mesma: “Não é possível… Esse homem só pode ter TOC…”.

Esse pequeno fragmento da vida de Bernardo e sua esposa evidencia que a palavra TOC está na boca do povo. Mesmo desconhecendo completamente a natureza do transtorno, muitas pessoas, como Luana, utilizam esse termo para designar o que no passado costumávamos chamar de “manias” (que, diga-se de passagem, também é uma extrapolação popular de uma condição psicopatológica).

Esse uso generalizado e popular da sigla TOC não é salutar. Na verdade, deveríamos reservar essa expressão apenas para os casos que efetivamente se enquadram nela e que são muito mais graves do que simples hábitos e rituais peculiares.

O transtorno obsessivo-compulsivo é uma espécie de adoecimento emocional que pertence à classe dos transtornos de ansiedade. Sim, o problema básico subjacente ao TOC é o excesso de ansiedade. Na verdade, poderíamos dizer que os sintomas mais visíveis dessa forma de adoecimento são formados justamente para fazer com que o indivíduo se sinta menos ansioso.

Como o próprio nome já indica, o transtorno obsessivo-compulsivo é caracterizado basicamente por obsessões e compulsões. O termo obsessões refere-se a pensamentos incomuns que se intrometem na consciência da pessoa de forma automática, sem que ela consiga controlar. Trata-se de pensamentos que provocam muita ansiedade no sujeito porque geralmente são contrários à sua vontade ou àquilo que ele conscientemente pensa de si mesmo e dos outros. Por exemplo, o pensamento de que alguém irá estuprar sua filha ou o pensamento de que o próprio sujeito é um ladrão. Já as compulsões são fenômenos secundários, que podem ser interpretados como uma evolução da doença e, ao mesmo tempo, como tentativas de cura. Uma compulsão é um ato que o sujeito se sente forçado a fazer e, eventualmente, a repetir com certa regularidade. Por exemplo, conferir se o portão de casa está fechado mesmo tendo acabado de fazer isso ou contar o número de passos ao caminhar.

Em geral, tanto as obsessões quanto as compulsões são vistas como irracionais pela pessoa e por observadores externos. Contudo, o que caracteriza o quadro como patológico é o fato de que o sujeito não consegue controlar os pensamentos obsessivos e deixar de executar as compulsões, o que acaba mais cedo ou mais tarde comprometendo seu dia-a-dia.

Por que as compulsões podem ser vistas como tentativas de cura para as obsessões? Porque ao cumprir os rituais compulsivos, o sujeito consegue “drenar” a ansiedade que foi produzida em sua alma pelos pensamentos obsessivos. É como se as compulsões “exorcizassem” as obsessões, neutralizando a ansiedade produzida por elas. Por exemplo, ao conferir várias vezes se o portão de sua casa está mesmo fechado, o sujeito consegue obter a segurança suficiente para “desmentir” em sua cabeça o pensamento obsessivo de que sua filha será estuprada. O problema é que os pensamentos obsessivos inevitavelmente retornam, o que obriga o sujeito a repetir os comportamentos compulsivos.

Como funciona o tratamento para o TOC? O principal objetivo da terapia nesses casos é conseguir eliminar os pensamentos obsessivos, já que as compulsões são apenas uma decorrência deles. Para extinguir as obsessões é preciso, primeiramente, descobrir a origem delas. Em geral, um pensamento obsessivo é a ponta do iceberg de um conjunto muito maior de pensamentos que se encontram reprimidos no Inconsciente do sujeito. Esses pensamentos reprimidos precisam ser trazidos à tona para que o sujeito possa compreender de onde veio o pensamento obsessivo e, assim, tenha condições de abandoná-lo.

Algumas pessoas, como o nosso amigo Bernardo, podem ter uma personalidade obsessiva sem necessariamente apresentarem TOC. Indivíduos com personalidade obsessiva são excessivamente apegados a rituais e modos particulares de organização e se sentem bastante ansiosos quando expostos a situações novas e que extrapolam suas possibilidades de controle. Mas isso é assunto para outro momento.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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