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Só tem gente falsa

(*) Dr. Lucas Nápoli

Sempre fui um grande apreciador de reality shows, especialmente aqueles de formato Big Brother em que um grupo de pessoas permanece confinada durante meses em uma casa e a cada semana um participante é eliminado. Acompanhei todas as edições do BBB e de A Fazenda e considero esse tipo de programa uma das poucas formas de entretenimento de qualidade que ainda restam na televisão. Talvez você possa ter se surpreendido ao saber disso, afinal, falar mal de reality shows no Brasil virou um pseudosigno de sofisticação cultural. Puro jogo de cena! O sujeito passa o dia vendo stories de blogueira no Instagram e considera reality shows um produto cultural de baixo nível. Risos.

Pois bem, em programas como o BBB e A Fazenda, nos quais conflitos interpessoais são estimulados pelas próprias regras do jogo, frequentemente se ouve participantes dizerem que “fulano de tal é falso” ou “tem muita falsidade aqui dentro”, dentre outras formulações do mesmo gênero. Falas como essas não são exclusividade dos reality shows. Uma rápida busca pelo termo “falsidade” no Twitter (rede social onde muita gente costuma chorar suas pitangas) mostra que muitas pessoas passam pela mesma experiência comumente encontrada entre os participantes de BBB e A Fazenda. Recentemente uma usuária publicou: “Quanto mais falsidade vejo mais sei que não preciso mesmo de certas pessoas na minha vida”. Outra tuitou a seguinte frase: “A falsidade vem de quem a gente menos espera!” seguida de um emoji com cara de enjoo.

De fato, podemos ser vítimas de pessoas que se mostram falsas amigas, que falam certas coisas em nossa presença e o oposto quando estamos ausentes. Contudo, creio que a alta frequência com que queixas relacionadas a supostas “falsidades” alheias têm aparecido no discurso comum contemporâneo seja um fenômeno relacionado à imaturidade generalizada dos nossos dias. Com efeito, uma análise realista das relações interpessoais no mundo adulto revela que a convivência humana seria inviável se as pessoas fossem integralmente espontâneas e sinceras. Em outras palavras, uma quota mínima de falsidade é necessária para a manutenção dos vínculos em qualquer tipo de interação humana. Nesse sentido, não seria exagerado dizer que todos nós somos, em alguma medida, falsos.

O psicanalista e pediatra inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971), fundamentado em sua experiência de atendimento tanto de adultos quanto de crianças, criou um conceito excelente para expressar essa dimensão de artificialidade/falsidade que faz parte da vida. Trata-se da noção de “falso self”. Self, em inglês, pode ser traduzido por “si mesmo”. O “verdadeiro self” seria quem nós somos espontaneamente, englobando ações e pensamentos que brotam naturalmente de nós e não como reações ao ambiente em que estamos inseridos. Seria muito bom se a gente pudesse o tempo todo ser quem verdadeiramente somos e fazermos exclusivamente aquilo que desejamos e naturalmente buscamos. Contudo, o fato de convivermos com outras pessoas que também possuem seus próprios desejos e inclinações nos leva inevitavelmente a viver em estado de permanente negociação. E, como em todo processo de negociação, é preciso que os negociantes renunciem a uma parcela daquilo que desejam para que o negócio seja concluído. Nesse sentido, se ninguém estivesse disposto a abrir mão de uma parcela de sua espontaneidade, a convivência entre as pessoas seria impossível já que haveria um conflito permanente e insolúvel entre os diferentes desejos.

O que Winnicott denomina de “falso self” é justamente o resultado dessa renúncia a uma parte de nossa espontaneidade. Com efeito, trata-se da camada da nossa personalidade que se adapta às circunstâncias externas, às exigências do ambiente e que se conforma eventualmente aos desejos e demandas de outras pessoas a fim de que a existência em comunidade se torne viável. Quando atravessamos um processo de desenvolvimento saudável, o falso self se forma naturalmente para dar conta da vida em um mundo compartilhado, mas não domina completamente a personalidade. Ou seja, o verdadeiro self continua vivo e se expressando nas ocasiões em que o falso self não se faz necessário ou de forma indireta por meio do próprio falso self. Por outro lado, se as condições ambientais presentes ao longo do desenvolvimento não forem favoráveis, o falso self pode acabar controlando toda a personalidade. Nesse caso, o sujeito perde a vinculação com o seu verdadeiro self, pois teme se expressar da forma como verdadeiramente é. Para ele, é mais seguro refugiar-se no falso self, adaptando-se como um camaleão ao ambiente, atendendo apenas aos desejos e demandas dos outros sem manifestar-se espontaneamente.

Vemos, portanto, que a tão falada “falsidade” pode ser corretamente classificada como um atributo da existência humana em sociedade. Eu sou falso, você é falso, todo o mundo é falso em alguma medida. A vida comunitária exige que evitemos falar tudo o que pensamos e fazer tudo o que queremos. Temos uma tendência natural para querermos nos expressar espontaneamente, sem qualquer tipo de amarra. Mas também, por força da interação com outras pessoas, temos o desejo de sermos amados e, para obtermos isso, não raro precisamos renunciar à nossa espontaneidade, falando e agindo não da forma como queremos, mas da maneira como esperam que falemos e agimos. Por amor.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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