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Pão de Miah

Marcos Santiago

Aconteceu nos arredores de uma pequena vila do século XIX. Miah acorda no meio da madrugada, incomodada com o choro de uma criança, filha da casa vizinha. O episódio se repete. A casa da frente já havia se queixado com as autoridades da região, mas a censura não calou o choro. Os pais da criança já não aplacavam a fome infantil e elementar. O lago onde pescavam fora cercado e drenado por estranhos. E o rio mais próximo não se alcançava com pernas fadigadas.

Então os vizinhos da casa de trás acharam por bem intervir, já que o choro da criança também lhes tiravam o sono e o vigor do dia. Passaram a promover visitas regadas com preces, rezas e orações. Ainda que na casa de antigos devotos, as preces logo evoluíram para uma entonação de lamúria altissonante. A fome tem vozes, cochicha, resmunga e grita.

O vilarejo continuava refém e insone, por entre os cumprimentos formais vindos das janelas entreabertas. O clima árido não poupou a terra. Miah e alguns poucos passavam os dias se servindo dos celeiros herdados, construídos na bonança ou adquiridos, não se sabe ao certo com quais mãos, de que forma, com que causa ou em qual circunstância. Também não se sabe, exatamente por qual, dos muitos motivos possíveis e imagináveis, o casebre vizinho, acuado pelo choro infantil, não havia por acomodar um celeiro ou quintal, ou cercas para cercar o arado velho. Nenhuma das teorias e medidas aplacava o choro noturno.

As noites no vilarejo se passavam sob a meia luz de uma vigília incômoda e crônica.

Foi no ritual diário de contar e trancar sua despensa que Miah percebe: o que lhe abasta não lhe garante um sono pacífico. Daquela despensa farta, impulsivamente retira três pães e aplaca a fome da criança magra que lhe avizinha.

Naquela noite não houve choro. Todos dormiram, alguns sonharam! Pela manhã, os pais da criança firmaram seus pés descansados e enfim, alcançaram a estrada que leva ao rio. De lá, voltaram com o pescado e dele fizeram as noites mais silenciosas de toda a vila. O conto ficou conhecido como a história do “Pão de Miah”.

Da ficção para a realidade de hoje, do conto para uma pandemia qualquer.  Oxalá o “pão de Miah” fosse a pandemia que nos compromete e o compartilhar do ”pão”. As fomes que nos perturbam são muitas e, por vezes, mais complexas, articuladas numa rede de variáveis infinitas. Têm diversos nomes e sobrenomes. Ainda assim, o “Pão de Miah” nos diz que quase todas as fomes que agudizam o corpo e a mente humana têm solução simples no formato, ainda que difícil de execução.

Está no “pão” e no “vizinho”. O pão da produção, da estrutura, da justiça, do direito, do acesso, da equidade, da ética, da acolhida, do abraço biopsicossocial. Está no material e no imaterial. O pão é o porto, a partida, a linha de largada, o motor e o combustível. O ”vizinho” é aquele outro e diverso, nessa vila espacial, esse grande e pequeno planeta Terra.

Uma pandemia (letal) das tantas registradas ao longo da história, saídas dos mais diversos cantos, são exemplos claros de que, o que acontece do outro lado vira uma pedra jogada no lago, com ondas propagadas que nos alcançarão. Aquela fumaça que sobe das nossas florestas, os refugiados de um ou outro conflito armado ou econômico, a insegurança ou desordem local, o tropeço que a mídia internacionalizou, são como o choro vizinho de Miah, capaz de tirar o meu, o seu e o nosso sagrado sono. E vai fazê-lo.

Catástrofes de grande proporção, grandes guerras e revoluções, crises epidemiológicas multinacionais e ameaças coletivas em grande escala trouxeram para as sociedades momentos de dor e desagregação, de desordem e caos, de desigualdade. Mas o caos é disfuncional para um sistema produtivo. Logo, também promoveram medidas que visaram reduzir (ao menos temporariamente) a desigualdade entre os associados, a fim de perpetuar a própria existência. Não é por mero acaso que nossas sociedades contam, em maior ou menor grau, com sistemas e serviços de saúde, previdência, assistência, direito trabalhista, justiça gratuita e mecanismos de benesse organizada. 

Miah, ao encarnar o sujeito comum de nossa era, não foi, ao menos objetivamente, movida por sentimentos de compaixão e altruísmo para com a criança que incomodava seu sono. Foi por necessidade. Longe de qualquer pretensão humana lúcida defender tal processo histórico, político e social, dolorido e indesejável. Antes fosse por mera iluminação, nascida dos homens de boa vontade.

Ainda assim, é inegável que são momentos históricos tensos que produzem mudanças sensíveis, havendo a necessidade ampla de repactuação do contrato social para a manutenção da coexistência e sobrevivência de toda a vila.

A fome do vizinho, o gemido acuado ou escancarado, do outro lado da rua ou do oceano, é insônia para a Grande Vila. Não há telhado ou cortina que os aplaquem definitivamente. Mas há o “Pão de Miah”. Que seja nossa pandemia transformadora! Que nunca falte pão na casa do vizinho, que nunca faltem sonhos e temperos para um bom sono.

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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