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Os desconfortos da existência

Dr. Lucas Nápoli (*)

Um dos livros mais conhecidos de Sigmund Freud, criador da Psicanálise, é “Mal-estar na civilização” ou, em bom alemão, “Das Unbehagen in der Kultur”. Se evoco aqui o título da obra no idioma original não é para ostentar erudição ou por qualquer outro vício narcísico dessa ordem. Meu intuito é apenas o de salientar que a expressão que Freud utiliza para nomear o livro pode ser traduzida de outras maneiras que representam diferentes interpretações do texto. Uma tradução que já se consagrou no Brasil, sobretudo em função da influência do pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan, opta pelo termo “cultura” para a tradução de “Kultur” ao invés de “civilização”. Quem prefere essa tradução geralmente o faz por pretender destacar que o mal-estar de que fala Freud não deriva de certo arranjo civilizacional específico, mas é inerente à existência humana na medida em que esta seria marcada intrinsecamente pelo domínio da cultura sobre a natureza.

Curiosamente, não conheço nenhum autor que tenha advogado uma tradução diferente para a palavra “Unbehagen”. Aparentemente, todos se sentem muito satisfeitos com o termo “mal-estar”. De minha parte, vejo um problema nessa expressão. Normalmente, quando dizemos que estamos com um “mal-estar”, trata-se de uma indisposição física, quase sempre correspondente a um estado de náusea, febre ou enjoo. Penso, portanto, que mal-estar tem uma conotação médica bastante destacada que pode acabar obscurecendo o fato de que o “mal-estar” de que fala Freud é uma experiência eminentemente psicológica. Além disso, a expressão “mal-estar” pode nos levar a pensar equivocadamente (do meu ponto de vista) que a condição humana é necessariamente ruim. Afinal, o termo “mal” expressa um juízo de valor. Se formos levar o termo ao pé da letra, diríamos que o ser humano estaria fadado a estar mal.

Por outro lado, embora seja possível notar um tom ranzinza e lamentoso no texto de Freud, penso que o que o fundador da Psicanálise apresenta em “Das Unbehagen in der Kultur” não é uma demonstração cabal de que a vida humana é necessariamente infeliz e insatisfatória. Talvez alguns leitores me acusem de estar “passando pano” (como se diz hoje em dia) para o pessimismo freudiano, mas ousarei propor aqui outra maneira de olhar para um texto que tem sido utilizado por muitos autores ao longo das décadas para refutar a ideia de que seja possível ter uma vida feliz.

Para isso, precisaremos optar por uma tradução diferente para o termo “Unbehagen”. Ao invés de “mal-estar”, utilizaremos um termo bem mais corriqueiro e popular: “desconforto”. À luz dessa tradução alternativa, olharemos para o que Freud diz em seu livro não mais como uma sucessão de argumentos e exemplos que comprovariam que o estado vivente do homem é um “mal-estar”, mas como uma longa demonstração de que a existência humana não é confortável.

Ora, essa simples mudança na tradução altera radicalmente o modo como encaramos o texto freudiano. Ao invés de tomá-lo como uma apologia ao pessimismo, podemos interpretá-lo como uma descrição sincera do caráter trágico da existência. Como se trata de um ensaio relativamente extenso, não irei analisar aqui todos os exemplos e raciocínios que Freud apresenta. Tomarei apenas como ilustração da interpretação que aqui defendo o modo como podemos compreender o enunciado freudiano de que o nosso sofrimento decorre de três fontes: “de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens.” (são palavras do próprio Freud no texto).

Aqueles que defendem o uso da expressão “mal-estar” para a tradução de “Unbehagen” encontram nessa citação de Freud e em inúmeros outros pontos do livro o fundamento para argumentarem que o pai da Psicanálise está demonstrando ali que a vida humana é necessariamente infeliz visto que nosso corpo definha, a natureza pode se voltar contra nós e os relacionamentos interpessoais podem nos fazer sofrer. Ora, é inegável que Freud está certo ao afirmar que nosso sofrimento decorre basicamente dessas três fontes. De fato, não é agradável perceber aos 50 anos que não somos mais capazes fisicamente de fazer o que fazíamos aos 20. Da mesma forma, ninguém pode negar o sofrimento muitas vezes indizível provocado por catástrofes naturais e pelas relações interpessoais. Contudo, esse é apenas um lado da história.

Freud propositalmente enfatiza a dimensão “negativa” do corpo, da natureza e das relações entre os seres humanos, pois seu objetivo é acentuar os desconfortos que fazem parte do existir. No entanto, todos nós sabemos que o mesmo corpo que pode ser fonte de sofrimento em função de seu desgaste, pode também ser fonte de alegria, prazer e realização quando funciona bem. O mesmo se pode dizer da natureza e das relações interpessoais. A mesma natureza que nos aterroriza com seus tsunamis e terremotos nos presenteia com suas praias e paisagens exuberantes. Outrossim, se por um lado as outras pessoas nos irritam, nos entristecem e nos decepcionam, por outro nos encantam, nos acolhem, nos alegram.

Portanto, podemos compreender “Das Unbehagen in der Kultur” não como um livro pessimista que supostamente defenderia uma visão da vida como condenada à infelicidade e a um suposto “mal-estar” crônico. Podemos enxergar esse texto como um longo e bem fundamentado aviso de que por mais que possamos viver com alegria, felicidade e entusiasmo, o mundo não é um parque de diversões e a existência é inevitavelmente desconfortável.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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