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O Vale do Rio Doce na literatura (continuação)

Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola (*)

Haruf Salmen

Estamos comentando sobre o romance Fome em Canaã, do escritor mineiro Agripa Vasconcelos (1896-1969), publicado em 1966. Como foi dito, a segunda parte do romance se passa em Figueira (Governador Valadares) e região, na década de 1920. O grande latifundiário Vicente, do Norte de Minas, mandou para Figueira os irmãos Julião e Calango, para comprarem uma fazenda, pois decidira se mudar com toda a família e seus homens de confiança para as Matas do Rio Doce. Ao chegar à Estação Ferroviária, Calango se espanta porque os “madeirões” do Norte de Minas são “frágeis gravetos”, perto de árvores gigantescas, como o jequitibá, que vira na fazenda “do velho Serra, patriarca do lugar”. O farmacêutico Milwars e Serra se incumbiram de ajudar Julião e Calango na escolha da terra a ser comprada por Vicente. São dois exemplos de utilização de dados históricos na ficção. Milwars refere-se ao farmacêutico Octávio Soares, cujo pai possuía fazenda em Baguari. O personagem Serra nos remete a Serra Lima, que nasceu em Figueira, em 1874, filho do cabo Máximo, que comandava o destacamento militar que ficava junto ao aldeamento indígena de Imaculada Conceição.

Em suas andanças à procura de terras para serem compradas, Julião e Calango se veem numa paisagem tão diferente, “que eles pensaram achar-se em país alheio”. Serra oferece uma descrição da fronteira: “Esta terra para nós é nova. …só havia ranchos de aventureiros e malocas de botocudos. (…) Sair de noite aqui era morte bastante provável”. De volta a Figueira, no hotel em que estavam hospedados, ouvem da boca de um advogado outra descrição da fronteira: “Isto aqui é terra de aventureiros. Não tem poetas, porque o homem vive de olhos aguçados, vigilante, frente aos múltiplos perigos que dão à vida um travor pavoroso.”

Depois de visitarem as “terras tomadas ao gentio”, que ficavam ao norte de Figueira, entre os rios Doce e Mucuri, passando pelo povoado de Santa Helena, se dão por satisfeitos. Na carta que Julião escreveu para Vicente, manifestou o espanto com a “grandeza de tudo isso aqui”, uma paisagem tão diferente. O contraste entre o Norte de Minas e a Mata do Rio Doce aparece na sugestão da compra de uma fazenda de 700 alqueires, pois essa equivaleria aos “três mil do nosso trabalhoso latifúndio”. A localização e as matas eram elementos que determinavam o valor da terra. A propriedade estava “unida na Vitória a Minas” (EFVM) e “à vista da estrada de Jampruca, futura rodovia para Teófilo Otoni”. Depois de contar que percorreram caminhos “entre matas, matas, matas”, conclui de forma hiperbólica: “Temos tido notícias de mais riquezas do que de pé-de-moleque”. A casa da fazenda era feita de braúna, “madeira que desconhecemos no S. Francisco” e que era capaz de “durar séculos e séculos”. Julião não deixa de repetir: “Estou intrigado com a grandeza de tudo isso aqui.”

Primeiro, Julião oferece as informações objetivas sobre a região e a propriedade que estava à venda, pertencente a um viúvo baiano que acabara de perder a única filha e, por desgosto, decidira “voltar para sua terra”. Em seguida, ele descreve uma paisagem dualista, composta pelas forças do bem e do mal, pela riqueza e pobreza, e pela vida e a morte, cujos elementos opostos estão em luta permanente. Essa dualidade de elementos envolve tanto a natureza como a sociedade. Diferente de Canaã de Graça Aranha, em Agripa Vasconcelos a região se torna personagem central na narrativa. Julião usa uma frase para produzir uma inflexão no seu discurso, com o objetivo de mudar o centro da narrativa para a região: “Todo o vale do rio Doce é uma vasta fogueira, queimam tudo, arrasam tudo.” Depois dessa imagem dramática, ele prossegue: “O barranqueiro daqui chama essa região terra de ururau. Ururau é o jacaré de papo-amarelo do rio Doce e terra de ururau é a designação popular de terra inculta, solo virgem, civilização incipiente”. Emerge, então, a imagem da fronteira, pois terra de ururau também é lugar para ser temido, da mesma forma que o bicho.

Essa imagem é construída com a oposição de elementos hiperbólicos de beleza, vida e esperança, em contraposição à negatividade da feiura, morte e tristeza. De um lado, a “visão encantada de suas ilhas cheias de orquídeas e palmeiras”; os gemidos dos mutuns e as fascinantes gemas de berilo; a floresta primitiva, que exala perfume e onde se ouve “o urro dos canguçus” (onça); uma “terra botocuda de ontem”, uma “terra da fartura” de hoje. Essa terra é o “rincão para enriquecer e envelhecer”. Entretanto, terra de ururau se torna outra terra: da febre e da tocaia. Tudo na terra é bárbaro, “de obscuras tragédias nas matas” e da “saga triste dos canoeiros”. Uma terra “sem caminhos”, pois os que existem são apenas “sulcos de arrastões das grandes toras” ou os trilhos da estrada de ferro. Nas “abertas da mata” (comunidades de posseiros), a “criança treme, verde de olhos abertos, com as visões da febre”. É a malária que “esverdeia o sangue dos adolescentes sem alegria”. Como diz Julião: é tanta coisa, que ele se sente “doido”. Entretanto, conclui a carta com otimismo: “O coração do velho está reflorescendo, ao tocar a terra das pedras coradas”. O romance de Agripa Vasconcelos é uma ótima oportunidade para ler um bom livro e, ao mesmo tempo, para voltar no passado 90 anos e conhecer como era Governador Valadares e região.


(*) Haruf Salmen Espindola
Professor do Curso de Direito da Univale
Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT
Doutor em História pela USP

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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