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O perfeccionista é um escravo de si mesmo

Dr. Lucas Nápoli (*)

Qualquer pessoa que já tenha passado por alguma entrevista de emprego na iniciativa privada sabe que amiúde recrutadores preguiçosos pedem para que os candidatos falem sobre suas qualidades e defeitos. Reza a lenda que nenhum entrevistado tem dificuldade para enumerar seus pontos positivos, mas, na hora de elencar os defeitos, a maioria fica hesitante e acaba por proferir o clássico “Eu sou muito perfeccionista.”.

Embora não possamos garantir que tal narrativa seja verídica – isto é, que, de fato, a maioria dos candidatos a vagas de empregos aponta seu suposto perfeccionismo como principal defeito – ela expressa nas entrelinhas a relação ambígua que os verdadeiros perfeccionistas têm com sua condição. Com efeito, se perfeccionismo é defeito, trata-se de um vício paradoxal, pois aqueles que o possuem se orgulham de serem vítimas dele.

Antes de prosseguir com meu raciocínio, acho importante formularmos uma definição de indivíduo perfeccionista para que tenhamos clareza acerca do objeto de nossa análise (será que estou sendo perfeccionista ao propor isso?). Eu diria que uma pessoa perfeccionista é aquela que, na maioria das vezes, ao realizar determinadas tarefas, imagina consciente ou inconscientemente um modo perfeito de realizá-las e se esforça exageradamente para alcançar esse objetivo ideal.

Eu sei: essa definição não é lá muito “sexy”. Talvez seja porque eu tentei construir um conceito perfeito de perfeccionista… Não sei. O mais importante é que creio ter colocado ali aqueles que me parecem ser os principais elementos que caracterizam o perfeccionismo. Com efeito, deixo claro nessa definição que as pessoas perfeccionistas não apresentam essa característica em todos os momentos e em todas as tarefas. Há indivíduos que só são perfeccionistas, por exemplo, no âmbito do trabalho. O indivíduo que não entrega um relatório sem antes fazer dez revisões gramaticais e ortográficas pode ser o mesmo que limpa a própria casa “só por cima”, como se costuma dizer.

Outro ponto importante que destaco em minha definição é a submissão do perfeccionista a uma imagem ideal consciente ou inconsciente que ele busca alcançar. Esse aspecto é crucial para compreendermos a psicodinâmica perfeccionista. De fato, apesar de parecer um herói corajoso em busca da excelência, o indivíduo que sofre de perfeccionismo é, na verdade, apenas um escravo que está constantemente sendo chicoteado por um senhor chamado IDEAL. Diferentemente de alguém que, exercendo virtudes como a responsabilidade e a generosidade, DECIDE empenhar-se para realizar uma tarefa de uma forma mais qualificada do que o mínimo necessário, o perfeccionista é aquele que não busca a excelência como uma escolha consciente e intencional, mas faz isso porque se vê compelido, obrigado, forçado a perseguir a perfeição.

O perfeccionista é escravo dos seus próprios ideais. É por isso que o perfeccionismo é difícil de ser abandonado: renunciar à tendência automática de buscar sempre e desnecessariamente a excelência significa, para o perfeccionista, abrir mão de uma parte muito valorizada de si mesmo. Isso explica também porque o perfeccionismo é paradoxalmente um suposto defeito do qual se tem orgulho. De fato, no fundo, o perfeccionista se envaidece ao contemplar-se no espelho da alma como um escravo diligente e proativo. Ele olha para aqueles que não compartilham de sua ânsia doentia pela perfeição e os julga como preguiçosos e medíocres. Bastam apenas alguns minutos conversando com um perfeccionista para verificar que ele se percebe como um ente superior aos “meros mortais” que não sentem tanto tesão pelo Senhor Ideal.

Como qualquer pessoa versada no “beabá” psicanalítico sabe, arrogância é sempre uma defesa contra um sentimento consciente ou inconsciente de impotência e insegurança. Assim, não nos surpreendemos ao constatar que, por trás da soberba inerente ao perfeccionismo, existe muito medo. Sim, o perfeccionista é um medroso. Não é só o prazer narcísico de se perceber como um eterno “funcionário do mês” de seu mundinho particular o que sustenta a ânsia do sujeito pela perfeição. No fundo, o perfeccionista morre de medo de não estar à altura dos seus ideais.

Não raro, indivíduos que se tornam perfeccionistas foram levados a crer, na infância, que a perfeição é alcançável. Por sua vez, essa ideia absolutamente disparatada leva o sujeito a colocar seus ideais não no plano de referências utópicas sabidamente inalcançáveis, mas que o estimulam a progredir. Não. A crença de que a perfeição é possível faz com que o sujeito tome seus ideais como realidades que podem ser sempre acessadas.

Inevitavelmente, o alcance dos ideais acaba se relevando uma tarefa impossível e o perfeccionista necessariamente é levado a perceber-se tal como é: uma pessoa com limitações, falhas e dificuldades. No entanto, como a crença infantil na perfeição persiste, o sujeito troca a constatação real de sua falibilidade essencial pela ideia de que se trata apenas de impotências passageiras e circunstanciais, das quais ele precisa estar o tempo todo fugindo rumo à perfeição. É assim que nasce a corrida estafante do perfeccionista: no fim das contas, ele está o tempo todo masoquisticamente fugindo do monstro da impotência sob os açoites do Senhor Ideal.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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