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O negacionismo nosso de cada dia

por Dr. Lucas Nápoli (*)

Este artigo é fruto da sugestão de uma paciente feita durante uma sessão de análise. A recomendação se deu em função de uma intervenção que eu havia feito comparando o modo como uma parte dela estava lidando com certas questões com a postura negacionista que muitas pessoas adotaram no Brasil e no mundo em relação à pandemia.

Desde que a doença começou a se espalhar pelo planeta, muitos indivíduos se recusam a admitir que se trata de um grave problema de saúde pública, com potencial altamente destrutivo e que requer medidas extremas. Ao longo desses mais de doze meses de pandemia, já houve quem menosprezasse a capacidade de proliferação do vírus, quem relativizasse o poder das medidas de distanciamento social e das máscaras e até quem sugerisse que, na verdade, não estavam acontecendo tantas mortes quanto as divulgadas pela mídia e pelos órgãos oficiais.

Por que é tão difícil para algumas pessoas admitirem que nós estamos numa situação realmente grave e catastrófica? Por que tantos indivíduos não conseguem reconhecer a realidade? Talvez você esteja se fazendo essa pergunta e imaginando que não pertence a esse grupo. Talvez você olhe para os negacionistas da pandemia e acredite que são pessoas ignorantes, tolas e que você jamais seria uma delas, afinal, você é um indivíduo esclarecido, que não se deixa levar por teorias conspiratórias e aceita a realidade tal como ela é.

Se você pensa assim, sinto lhe informar, mas nem eu e nem você estamos tão distantes assim dos negacionistas. Para dizer logo de cara: todos nós somos negacionistas em alguma medida. Você pode até não negar a realidade do vírus e da pandemia, mas certamente há pontos da sua própria história em relação aos quais você certamente é um negacionista. Foi o que eu tentei mostrar à paciente que me sugeriu esse artigo.

Entenda: aceitar a realidade é um desafio. Para verificar a pertinência dessa afirmação basta se lembrar da quantidade de vezes em que você percebeu que se autoenganou, acreditando que as coisas eram da maneira X quando, no fundo, você sabia que eram da maneira Y. Quantas mulheres, por exemplo, permanecem em relacionamentos abusivos fingindo para si mesmas que não estão enxergando todos os sinais inequívocos de abuso emitidos pelo parceiro? Elas sabem que estão sendo abusadas, mas optam por não prestar atenção aos aspectos da relação que confirmam isso. Em outras palavras, tais mulheres deliberadamente negam a realidade em que estão.

Ora, qual a diferença essencial entre uma mulher que faz isso e uma pessoa que acredita que a pandemia não é tão grave quanto parece? Nenhuma. Ambos estão recusando-se a admitir uma realidade evidente. Mas por que isso acontece? Por que é tão difícil para algumas pessoas afirmarem as situações do jeito que elas de fato são. A resposta está num conceito formulado por Freud para descrever a tendência geral de funcionamento da nossa alma: trata-se do conceito de “princípio do prazer”.

Freud descobriu que os seres humanos estão sempre buscando o prazer e tentando evitar o desprazer. É isso o que faz com que uma criança, por exemplo, resista a comer vegetais e não recuse uma bela taça de sorvete. É óbvio: para o paladar infantil, os vegetais não são prazerosos ao passo que o sorvete é uma delícia. Da mesma forma, quando a realidade nos presenteia com experiências desagradáveis, temos a tendência de recusá-las. Às vezes, é possível simplesmente evitar passar por algumas dessas experiências. É o que faz, por exemplo, a pessoa que possui excesso de ansiedade social quando decide não ir a uma festa. Por saber que se sentirá mal, o indivíduo simplesmente evita se submeter àquela situação.

No entanto, há certas experiências que nós somos forçados a vivenciar. É o caso da pandemia, por exemplo. Não é possível escolher não passar por ela. Nesses casos, quando não podemos evitar uma situação, só nos restam duas opções. A primeira delas é aceitar o desprazer inerente à experiência e buscar compensá-lo concretamente (há pessoas, por exemplo, que buscaram essa compensação no álcool e passaram a beber em excesso após o advento da pandemia) ou pela via do pensamento (a esperança pelas vacinas e pelo avanço da ciência entra nessa categoria). A outra opção da qual podemos lançar mão para lidar com uma situação desprazerosa inevitável é a negação. Nesse caso, ao invés de buscar o prazer compensatório na realidade ou no pensamento, a gente simplesmente se recusa a acreditar que a realidade seja de fato desagradável. Assim, fingimos para nós mesmos que não estamos enxergando o que nossos olhos nos mostram e criamos outra versão da realidade, mais agradável, e que é proveniente da nossa fantasia.

Reitero: todos nós fazemos isso. Não são apenas os negacionistas da pandemia que trocam a realidade dura por uma fantasia menos ameaçadora. Todos nós temos determinados pontos de nossa história que simplesmente não queremos enxergar e preferimos fingir que nunca existiram. Talvez você esteja fazendo isso hoje mesmo consigo. Talvez a realidade esteja escancarada diante dos seus olhos, mas, pelo medo de sofrer, você prefere não admiti-la para viver numa realidade paralela e fantasística.

(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de
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