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O curioso fenômeno da transferência

Dr. Lucas Nápoli (*)

Você já teve a impressão de estar se relacionando com uma pessoa da mesma forma com que se relacionava com seu pai ou sua mãe quando criança? Ou já se percebeu reagindo a determinadas situações do mesmo modo com que costumava reagir na infância? Bem, se isso já aconteceu com você, é bastante provável que tenha vivenciado o fenômeno que denominamos em Psicanálise de transferência.

Esse foi o nome que Freud escolheu para caracterizar determinadas experiências muito interessantes que ele observou enquanto tratava de seus pacientes. O médico austríaco constatou que muitos de seus analisantes pareciam comportar-se na relação com ele de modo muito semelhante ao que haviam utilizado com seus pais ou irmãos na infância. Por exemplo, havia pacientes que, quando crianças, tinham muito medo de seus pais, relacionando-se com eles de forma exageradamente submissa. Tais pacientes, durante o tratamento com o Freud, eventualmente se portavam praticamente da mesma maneira, expressando de forma mais ou menos explícita o temor de serem castigados pelo terapeuta.

Após notar o caráter típico desse fenômeno, ou seja, o fato de que ele acontecia com muita frequência na maioria dos casos que atendia, Freud decidiu pensar teoricamente sobre tais ocorrências a fim de explicá-las. É nesse momento que nasce o conceito de transferência. O pai da Psicanálise chega à conclusão de que todas as pessoas constroem na infância certos padrões de relacionamento com o outro (mãe, pai, irmãos, dentre outras pessoas presentes no contexto primário da criança). Esses padrões funcionariam como roteiros a nortear o modo como o vínculo com o outro deveria ser estabelecido. Embora Freud admita que tais padrões podem vir a ser modificados pela experiência, o autor enfatiza que eles possuem certa fixidez, ou seja, o sujeito tende a mantê-los ainda que estejam em desacordo com as variabilidades da relação com o outro. Por exemplo, uma criança pode manter um padrão submisso de relação com o pai mesmo que posteriormente o genitor se apresente como flexível e brincalhão.

Os fenômenos que Freud vai etiquetar com o termo transferência designam justamente o processo de transferir esses padrões de relacionamento forjados na infância para outras relações, especialmente a relação terapêutica com o psicanalista. A hipótese proposta pelo pai da Psicanálise é mais ou menos a seguinte: o sujeito forjaria determinados padrões de relacionamento com o outro na infância e os manteria como predisposições a serem “ativadas” em outras relações, tanto na infância quanto na adolescência e na vida adulta. Nesse sentido, o menininho que desenvolveu o padrão submisso de relacionamento com o pai pode transferir esse modelo para sua relação com os professores durante a infância e a adolescência e, na vida adulta, para a relação com seu chefe no trabalho e com o analista na terapia.

As transferências não acontecem por acaso. Dentre as diversas razões que podemos elencar para explicá-las, podemos destacar duas: a primeira poderia ser expressa pelo velho provérbio popular “Em time que está ganhando não se mexe”. Embora qualquer pessoa em sã consciência saiba que não é saudável um padrão de relacionamento com o outro baseado na submissão, é bastante provável que o indivíduo que forjou e manteve esse padrão na infância tenha chegado à conclusão (naquela época) que essa é a maneira mais satisfatória e menos perigosa de se relacionar com o outro (a começar pelo pai). Portanto, para essa pessoa, não valeria a pena inventar um modo novo de se relacionar e correr o risco de perder a “segurança” e “satisfação” que o padrão submisso lhe proporciona inconscientemente.

A outra razão que podemos mencionar para explicar as transferências pode ser sintetizada na chamada “lei do menor esforço”. Se fôssemos estabelecer um padrão específico de relacionamento com cada uma das pessoas com quem nos relacionamos, teríamos um gasto de energia mental insustentável. Imagine ter que criar do zero uma forma particular de se relacionar com cada nova pessoa com quem você estabelece um vínculo. Só de pensar, você já fica com preguiça, certo? Então, por essa razão, é mais “econômico” apelar para a transferência. Por meio desse mecanismo, a gente pode recorrer ao repertório de padrões de relacionamento que construímos na infância sempre que se depara com uma relação nova.

É claro que a escolha de qual padrão será acionado em cada relação não é feita de modo consciente e tem relação com as características da pessoa com quem estamos nos relacionando. Se minha terapeuta, por exemplo, for mulher e tiver certos atributos físicos e/ou traços comportamentais semelhantes aos de minha mãe pode ser que eu transfira para a relação com ela o padrão de relacionamento que eu construí para o vínculo com minha genitora. Por outro lado, se eu enxergar essa mesma terapeuta como uma forte figura de autoridade pode ser que o padrão de relacionamento ao qual eu recorra seja o paterno e não o materno. Enfim, não dá para prever.

E você, consegue identificar o fenômeno da transferência no seu dia-a-dia? A quais padrões infantis de relacionamento você tem mais recorrido?


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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