[the_ad id="288653"]

O adoecimento emocional como meio de satisfação

por Dr. Lucas Nápoli (*)

Normalmente nós encaramos nossas doenças e dores emocionais como problemas que precisam ser resolvidos ou falhas que precisam ser corrigidas. Contudo, o que a clínica psicanalítica evidencia é que nossas enfermidades psíquicas são, na verdade, soluções que nós encontramos para outros problemas muito mais profundos. Essa é uma das razões pelas quais temos tanta dificuldade para nos livrarmos sozinhos de nossos sintomas, ansiedades e inibições. Em certo sentido, somos apegados às nossas doenças e não estamos dispostos a abandoná-las com tanta facilidade.

O que eu acabei de escrever pode parecer absurdo ou, no mínimo, contraditório para muitos de vocês que me leem neste momento. É compreensível. Quando consideramos as doenças físicas, tendemos a pensar que somos acometidos por elas, ou seja, que somos passivos em relação às patologias. Dizemos, inclusive, que “pegamos” ou “contraímos” determinada enfermidade. A ideia aqui é a de que a doença invadiu o nosso corpo e que não temos nenhuma responsabilidade por isso. Como encaramos dessa maneira as patologias físicas, temos a tendência a imaginar que, para o caso das doenças emocionais, vale a mesma lógica. Assim, se uma pessoa desenvolve um quadro de depressão, a maioria de nós imagina que tal indivíduo foi vítima da depressão. Em geral, não costumamos pensar que essa pessoa possa ter criado voluntariamente esse episódio depressivo. Afinal, como alguém poderia, em sã consciência, querer ficar deprimida, né?

Pois é! O problema aqui é justamente essa expressão “em sã consciência”. De fato, nenhum de nós, “em condições normais de temperatura e pressão”, desejaria conscientemente ficar deprimido. Todavia, a nossa mente não é constituída apenas pela Consciência. A maior parte da nossa alma é inconsciente e é justamente nessa dimensão obscura e desconhecida do psiquismo que residem determinados pensamentos e raciocínios que vão de encontro àquilo que o bom senso recomenda. No Inconsciente são válidos princípios que frequentemente contrariam os pensamentos que temos “em são consciência”.

Nesse sentido, podemos conscientemente desejar a saúde e inconscientemente buscar o adoecimento. Isso acontece quando se estabelece um conflito muito severo entre nossa Consciência e nosso Inconsciente. Em geral, essas duas dimensões estão quase sempre em oposição. Afinal, o Inconsciente abriga os nossos impulsos mais primitivos, os quais podem ser classificados basicamente em dois grupos: impulsos de vida e impulsos de morte. Os impulsos de vida são aqueles que nos levam a buscar a nossa própria sobrevivência (instintos de autopreservação) e aqueles que nos incentivam à reprodução (instintos sexuais). Já os impulsos de morte são aqueles que nos levam a buscar a destruição de nós mesmos e dos outros. Essas duas classes de impulsos podem se misturar ou entrar em conflito – depende do momento que estamos vivendo.

Enquanto o Inconsciente abriga nossos impulsos biológicos que buscam satisfação a qualquer custo, a Consciência está conectada com a realidade concreta e seus limites e obstáculos. Além disso, na Consciência também estão situados os nossos ideais de conduta bem como as normas e valores que norteiam nosso comportamento. É por isso que o Inconsciente frequentemente entra em conflito com a Consciência. Com efeito, enquanto o Inconsciente quer pura e simplesmente descarregar os impulsos de vida e de morte, a Consciência está atenta às demandas e limites da realidade e da moralidade.

Por outro lado, é possível estabelecer um convívio relativamente harmônico entre a Consciência e o Inconsciente. Para tanto, é preciso que a Consciência não tenha medo de “conversar” com o Inconsciente. Se tal diálogo se estabelecer, Consciência e Inconsciente entrarão numa espécie de acordo em que ambos saem ganhando: o Inconsciente aceita satisfazer seus impulsos de forma indireta e a Consciência encontra caminhos dentro dos limites da realidade e da moralidade para proporcionar essa satisfação. É isso o que acontece quando estamos emocionalmente saudáveis.

Por outro lado, se a Consciência se mantém rígida e intolerante, evitando qualquer tipo de interlocução com o Inconsciente, o resultado será o acirramento do conflito entre as duas instâncias. O problema é que não se trata de uma guerra simétrica: o Inconsciente, apesar de caótico e irracional, é muito mais forte do que a Consciência. Afinal, como disse acima, no Inconsciente estão os nossos impulsos biológicos mais básicos. Portanto, se a Consciência se mantém rígida e indisposta ao diálogo, ao Inconsciente não resta alternativa a não ser forçar essa conversa. É justamente essa a condição necessária para o surgimento dos sintomas psicopatológicos. Pressionada pelos impulsos do Inconsciente, mas mantendo-se firme em sua decisão de não dialogar, a Consciência se verá forçada a permitir o desenvolvimento de uma doença como meio de fuga.

Sim, uma doença: depressão, transtornos de ansiedade, fobias, transtorno obsessivo-compulsivo etc. O Inconsciente pode satisfazer seus impulsos por meio de uma enfermidade emocional quando a Consciência não lhe oferece outro caminho. Isso explica por que temos tanta dificuldade de nos livrarmos de nossas doenças. Embora nos tragam sofrimento, inconscientemente elas também nos proporcionam satisfação.

(*) Psicólogo/Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ), Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ), Psicólogoclínico em consultório particular,  Psicólogo da UFJF-GV, Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem, necessariamente, a opinião do jornal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

[the_ad_placement id="home-abaixo-da-linha-2"]

LEIA TAMBÉM

Conhecendo mais sobre as femtechs

🔊 Clique e ouça a notícia Igor Torrente (*) Por muito tempo, pesquisas e inovações tecnológicas ignoraram as diferenças de gênero, resultando em soluções que não se ajustavam completamente às

Recheio de infância

🔊 Clique e ouça a notícia por ULISSES VASCONCELLOS (*) Casa da avó. Início dos anos 90. Férias de janeiro. Calorzão. Um tanto de primos crianças e pré-adolescentes cheios de

Um olhar para os desiguais

🔊 Clique e ouça a notícia Luiz Alves Lopes (*) Salvo entendimentos outros próprios dos dias atuais, vivemos em um país civilizado em que vigora o Estado Democrático de Direito

Alegria de viver

🔊 Clique e ouça a notícia por Coronel Celton Godinho (*) Vivemos em um mundo emaranhado de conflitos entre nações, entre indivíduos. Já há algum tempo, venho observando as relações