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Narcisismo não é amor-próprio

Originalmente a palavra narcisismo foi inventada para descrever um modo particular de vivência da sexualidade na qual o sujeito trata o próprio corpo como um objeto sexual, ou seja, como se fosse o corpo de outra pessoa. O termo “narcisismo” faz referência a Narciso, um personagem da mitologia grega que foi condenado pela deusa Némesis a apaixonar-se por sua própria imagem. O poeta romano Ovídio conta que Narciso morreu justamente porque, ao ver seu rosto refletido nas águas de uma lagoa, apaixonou-se por si mesmo e acabou definhando enquanto, embevecido, contemplava-se dia após dia.

Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, expandiu o alcance do conceito de narcisismo para englobar a relação de amor que todos os seres humanos possuem com a imagem idealizada que projetam de si mesmos. Com efeito, frequentemente fazemos certas coisas ou deixamos de fazer outras a fim de não mancharmos a imagem que queremos ter de nós mesmos. É por isso, por exemplo, que uma jovem pode evitar ir para a cama no primeiro encontro apesar do ardente desejo de fazê-lo. Afinal, ceder a esse anseio seria um comportamento que entraria em contradição com a imagem de moça recatada que ela quer ter de si mesma.

Acho que deu para você perceber que, quando estamos falando de narcisismo, não se trata do que costumamos chamar no senso comum de amor-próprio. Em nossa dimensão narcísica, não amamos a nós mesmos, mas a imagem idealizada que queremos ter de nós mesmos. Estou chamando sua atenção para isso porque meu propósito com este artigo é demonstrar que muitas vezes é justamente o narcisismo o responsável por destruir o nosso amor-próprio. Com efeito, em nome do amor ao nosso eu ideal, podemos nos envolver em situações, relacionamentos e atitudes que podem ser profundamente autodestrutivos. Vou citar um exemplo.

João sempre foi conhecido desde a infância por ser um sujeito calmo, pacífico, incapaz de fazer mal a uma mosca. Quando criança, sua mãe sempre dizia para os vizinhos que ele era um “menino de ouro”, pois sempre fora muito tranquilo e nunca lhe dera trabalho. Na escola, João era sempre citado como exemplo de conduta. De fato, mesmo quando era humilhado e zombado pelos colegas pelo fato de ser gordinho, o garoto jamais manifestava qualquer sinal de raiva ou agressividade. Assim, gradualmente foi sendo tecida em João um eu ideal constituído essencialmente pelos traços valorizados pelas pessoas à sua volta, isto é, a calma, a passividade, a não-violência etc.

Por outro lado, conforme crescia, João se tornava cada vez mais inseguro e tímido. Apesar dos elogios recebidos de sua mãe e dos professores, ele não se sentia bem consigo mesmo. Vivia ansioso e tenso como se estivesse o tempo todo sob ameaça. Conquanto estivesse entre os melhores alunos da escola, o rapaz frequentemente se via como um fracassado e não conseguia desfrutar do status de aluno inteligente e promissor. Esse padrão emocional doentio permaneceu na vida adulta e a ele foram acrescentados outros problemas: atualmente João sofre muito quando precisa recusar algum pedido ou convite; percebe que está sempre tentando agradar as pessoas; e evita situações de conflito como o diabo foge da cruz.

Analisando essa história fictícia (baseada em diversos casos reais de pacientes que já atendi), fica claro que o nível de amor-próprio de João é muito baixo. Com efeito, o rapaz está constantemente se prejudicando na relação com outras pessoas e olhando para si mesmo de forma pejorativa. Uma pessoa ingênua, que não leu este texto e, portanto, não sabe que narcisismo é diferente de amor-próprio, poderia pensar que o João não tem qualquer dimensão narcísica. Contudo, trata-se, na verdade, do oposto: é justamente o narcisismo desse rapaz o que o impede de verdadeiramente amar-se.

Como disse anteriormente, a imagem idealizada que João inconscientemente construiu de si mesmo é marcada pela passividade, pela calma e pela não-violência. O apego excessivo a essa imagem (provavelmente ocasionado por carências afetivas reais) fez com que o rapaz tivesse que reprimir todos os elementos naturais de sua alma que não estavam alinhados com o eu ideal. Dentre esses elementos estão a raiva, a agressividade e o gosto pela dominação. Esses traços são potencialidades presentes em todas as pessoas e, quando expressos de forma espontânea e nos contextos apropriados, são bastante úteis na relação do sujeito consigo mesmo e com os outros.

Por exemplo, se João não tivesse reprimido o gosto pela dominação, pelo poder, pela vitória, muito provavelmente conseguiria ter experimentado o prazer de estar entre os melhores alunos da escola. Do mesmo modo, se não tivesse reprimido a raiva e a agressividade, João conseguiria lidar naturalmente com situações de conflito ao invés de fugir delas.

Perceba, portanto, que foi justamente pelo amor entorpecido por sua imagem idealizada de “bom menino” que João tornou-se autodestrutivo. Ao reprimir todos os aspectos de seu ser incompatíveis com essa imagem, o rapaz inconscientemente acaba se prejudicando, se maltratando, se diminuindo. Tal como Narciso, João se mortifica em função da cega paixão por seu eu ideal.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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