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Não fuja do sofrimento: a realidade cura

Ninguém deseja conscientemente o sofrimento. Em “condições normais de temperatura e pressão”, preferimos sempre a alegria ao invés da tristeza, o prazer ao invés da dor, a tranquilidade ao invés da irritação. Por outro lado, sabemos que é impossível passar pela vida sem experimentar tristezas, dores e irritações. Na verdade, como já frisei em outro artigo, o próprio processo de amadurecimento exige a passagem por vivências de sofrimento. Nesse sentido, quem deseja crescer do ponto de vista psicológico não precisa desejar a dor, mas precisa estar disposto a passar por ela quando necessário. Neste artigo pretendo discutir justamente o medo exagerado que algumas pessoas experimentam em relação ao sofrimento e como isso compromete de forma desastrosa sua saúde mental e seu processo de amadurecimento.

Melanie é uma jovem de vinte e poucos anos que mora com sua mãe. Os pais se separaram quando ela ainda era criança. Apesar de já estar quase terminando uma graduação, a jovem sofre com a superproteção materna. Com efeito, a genitora não permite, por exemplo, que a filha chegue em casa depois das 23 horas. Antes que o caro leitor pense que tal proibição possa ser justificável em função do comportamento de Melanie, preciso esclarecer que não, a jovem não é uma garota irresponsável. Pelo contrário: trata-se daquele tipo de filha que nunca “deu trabalho” para a mãe. A jovem quase não faz uso de bebida alcoólica, tem um namoro sólido, de quatro anos, e, de forma geral, adota uma atitude cautelosa diante da vida. Portanto, a preocupação materna com o que pode acontecer com a filha após as 23h é exagerada e não faz jus ao grau de responsabilidade e maturidade que a jovem apresenta. Quando Melanie ousa desobedecer à mãe e chega em casa após o horário estipulado, acaba recebendo uma avalanche de queixas e recriminações da genitora que muitas vezes beiram o desrespeito. Na última vez em que isso aconteceu, Melanie sofreu tanto que prometeu para si mesma que não só não desobedeceria mais à mãe como também terminaria o relacionamento com o namorado e não mais sairia de casa à noite enquanto estivesse morando com a genitora.

Esse breve fragmento da vida de Melanie se assemelha ao cotidiano de muitos outros jovens que convivem com pais superprotetores e ao de diversas outras pessoas das mais diferentes faixas etárias que experimentam situações de coerção e opressão. No entanto, quero chamar sua atenção não para o comportamento da mãe de Melanie, mas para o modo com que a garota lida com o sofrimento que ela experimenta no relacionamento com a mãe. A experiência altamente desagradável de receber as severas reprimendas da genitora incitou Melanie a tomar uma decisão muito significativa para sua vida: o término do namoro. Ou seja, para não mais vivenciar o sofrimento temporário causado pelo falatório da mãe, a jovem optou por fazer uma alteração drástica e definitiva em sua realidade.

Infelizmente muitas pessoas tomam decisões em suas vidas seguindo a mesma lógica de Melanie: para escaparem do sofrimento, acabam provocando danos reais em sua existência. Terminar o namoro e parar de sair de casa à noite não eram as únicas opções disponíveis para a jovem. Ela poderia, por exemplo, entrar ativamente em conflito com a mãe, passando a desobedecer sistematicamente a suas proibições superprotetoras. Isso pode não parecer muito politicamente correto, mas provavelmente daria resultado: gradualmente a mãe se daria conta de que a filha não é mais aquela criancinha que acatava suas ordens sem resistência. O problema é que Melanie precisaria lidar com as reclamações e admoestações da mãe durante um bom tempo até que a genitora desistisse de tentar controlar o comportamento da filha. No entanto, ao invés de tentar suportar o sofrimento passageiro do conflito com a mãe, a jovem preferiu se prejudicar de modo definitivo.

Veja: o desconforto que Melanie vivencia ao ser censurada pela mãe por chegar em casa após as 23 horas é apenas uma experiência psíquica. Ao utilizar o advérbio “apenas” não estou dizendo que se trata de algo sem importância. Quero apenas ressaltar o fato de que desconforto, dor, tristeza, raiva etc. são meramente produtos transitórios do funcionamento do nosso sistema nervoso. Hoje você está com raiva, amanhã não está. Hoje algo te deixou triste, mas amanhã algo poderá lhe deixar alegre. Entendeu? Nossas emoções são efêmeras, temporárias, passageiras. Por isso, tomar decisões tendo em vista a busca ou a evitação de sentimentos é como dar um tiro no próprio pé.

Quando você se dá conta de que tanto o sofrimento quanto as emoções positivas como alegria, felicidade, paz etc. são experiências transitórias, o que passa a servir como parâmetro para suas decisões é a realidade objetiva, ou seja, as situações concretas da vida, que não se desfazem do dia para a noite. Se Melanie tivesse tomado consciência disso, teria topado passar pelo sofrimento temporário de ter que ouvir o falatório materno e não teria renunciado à realidade concreta de seu namoro. Ela teria percebido que, depois que a mãe acabasse de falar, mais cedo ou mais tarde sua tranquilidade e alegria voltariam. Já em relação ao namoro, ela não pode dizer o mesmo. Será que o namorado toparia voltar caso ela se arrependesse da decisão no mês seguinte?

Melanie optou pelo caminho mais fácil: para fugir de uma vivência de sofrimento, renunciou a uma realidade. Não vá por essa vereda. Opte sempre pela realidade. A realidade cura.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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