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Manda quem pode, obedece quem tem juízo: mas de onde vem o juízo?

por Dr. Lucas Nápoli (*)

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Certamente você já ouviu esse provérbio. Na verdade, todas as pessoas possuem juízo, não só as que obedecem. Em Psicologia, nós chamamos isso de consciência moral, isto é, noções de certo e errado, de Bem e Mal, daquilo que devemos fazer e daquilo que não deve ser feito. Até mesmo os indivíduos que apresentam o chamado “transtorno de personalidade antissocial”, popularmente conhecidos como “psicopatas”, possuem consciência moral. Apesar de não a tomarem como parâmetro para suas condutas, visto que não possuem sentimentos morais, os psicopatas sabem muito bem que é errado, por exemplo, prejudicar uma pessoa apenas com o intuito de satisfazer os próprios interesses. Podemos dizer, portanto, que a consciência moral é um fenômeno universal.

Você já se perguntou como é que nós adquirimos essa consciência? De onde vem o juízo? Seria ele inato ou adquirido pela experiência? Neste artigo pretendo apresentar a teoria freudiana sobre esse aspecto da psicologia humana, ou seja, como Sigmund Freud, criador da Psicanálise, concebe o advento da consciência moral. Só por esse enunciado, já é possível inferir que o médico vienense não se coloca entre aqueles que defendem uma perspectiva inatista sobre esse fenômeno. Com efeito, para Freud, a consciência moral é desenvolvida, isto é, trata-se de uma dimensão que se constitui com base nas experiências de vida e não como expressão de uma programação genética.

Fundamentado em sua experiência clínica, com pacientes adultos neuróticos, Freud chegou à conclusão de que no início da vida nós podemos ser caracterizados como seres amorais, isto é, criaturas que não avaliam seus próprios comportamentos e os dos outros, com categorias do tipo certo/errado. Com base naquilo que ouvia de seus pacientes, no consultório, o médico austríaco descobriu que os comportamentos das crianças, nos primeiros meses de vida, são norteados, exclusivamente, por impulsos biológicos – impulsos que levam o bebê a buscar alimento e prazer, basicamente. Por isso, a criança não se importa com os eventuais prejuízos que seus atos podem causar. Sobretudo, nas primeiras semanas de vida, o bebê vivencia uma ilusão de onipotência, pois, na maioria dos casos, tudo o que ele faz é permitido e alvo da admiração de todos à sua volta.

Todavia, esse estado de coisas não dura por muito tempo. À medida que a criança vai crescendo, os pais começam a estabelecer limites para seu comportamento. É assim que o pequeno filhote de Homo sapiens descobre aquela velha máxima, repetida por 10 em cada 10 mães brasileiras: “Querer não é poder.” A criança vai então, gradualmente, se dando conta de que existem coisas que ela pode fazer (e que serão aprovadas por seus pais) e outras que ela deve evitar, pois, se fizer, deixará os pais zangados ou decepcionados. Os pequenos descobrem, então, que, além do mundo natural, com o qual já estavam acostumados, existe também o mundo sociocultural, com suas regras, leis e valores.

Contudo, não se engane: nesse momento, a criança ainda não tem consciência moral. Afinal, para ela, inicialmente o mundo das leis nada mais é do que a vontade dos pais. Aquilo que os pais deixam fazer é permitido. Aquilo que eles não deixam, é proibido. A consciência moral só começará a existir quando a criança passar a encarar determinadas ações como incorretas, por exemplo, porque elas lhe parecem objetivamente erradas, e não porque são proibidas por seus pais. Inicialmente não é assim. Num primeiro momento, as crianças se comportam moralmente, porque têm medo de decepcionar os pais ou de serem punidas por eles. É só numa etapa posterior do desenvolvimento, que o olhar dos pais deixa de ser necessário, para que os pequenos se mantenham “na linha”.

Essa virada acontece ao longo do processo de separação do convívio ininterrupto com os pais, que a criança vivencia quando começa a ir para a escola. Como forma de compensar esse rompimento (que para muitas crianças é extremamente doloroso), os pequenos lançam mão de um mecanismo de defesa benigno chamado identificação. Trata-se de um processo psicológico, em que internalizamos aspectos de pessoas que amamos. É como se trouxéssemos algumas partes do outro para dentro de nós mesmos. Ao fazer isso com os pais, a criança introjeta diversos aspectos deles, dentre os quais, os critérios de certo e errado que papai e mamãe adotam. Em outras palavras, a criança traz para dentro de si a consciência moral dos pais. Como todo esse processo ocorre de modo inconsciente, o pequeno não se dá conta de ter feito isso e, assim, passa a avaliar condutas como certas e erradas, como se estivesse fazendo um juízo totalmente objetivo. Na prática, está apenas reproduzindo os julgamentos morais dos genitores.

Ao se identificar com os pais e, portanto, trazê-los para dentro de si, a criança passa a não precisar de tanta vigilância externa. Afinal, o pequeno passa a vigiar a si mesmo, observando, avaliando e julgando seus próprios comportamentos. É nesse contexto que emerge, com vigor, um dos mais valiosos sentimentos morais: a culpa. Ao fazer algo que sua consciência moral (que, a princípio, nada mais é do que a consciência moral dos pais) reprova, o sujeito experimenta o sentimento de culpa – que equivale à decepção dos pais ou a punição na primeira infância. Culpa é, portanto, a expressão de uma decepção consigo mesmo; revela uma divisão do nosso eu em uma parte que avalia e julga, e outra que é avaliada e julgada.

Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ), Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ), Psicólogoclínico em consultório particular, Psicólogo da UFJF-GV, Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem, necessariamente, a opinião do jornal.

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