‘Hoje parece atrativo ter o leite importado, mas no futuro não será’

FOTO: Kissyla Pires/DRD

Presidente da Cooperativa detalha como a importação de leite feita pelo Brasil tem prejudicado pequenos produtores e que consequências poderão gerar na economia

GOVERNADOR VALADARES – Por terem um território e população menores, Argentina e Uruguai começaram a exportar leite ao Brasil por valores abaixo do que é pago, em média, no País. O barato, no entanto, pode sair caro a médio e longo prazo. Isso porque os produtores rurais brasileiros ainda enfrentam desafios, já solucionados nos países vizinhos, que tornam o custo da produtividade brasileira maior.

Segundo o presidente da Cooperativa Agropecuária Vale do Rio Doce, João Marques Pereira, a importação pode resultar no fim da produtividade de pequenos produtores, a maioria do País, criando um novo êxodo rural e desemprego nas cidades. Especialmente porque a produção leiteira é a base de muitos municípios do País, com destaque para os pequenos.

Além disso, com o enfraquecimento da produção local e aumento da importação, o Brasil pode se tornar refém de produtos que hoje estão mais acessíveis, mas que amanhã, entretanto, poderão estar mais caros.

MINAS GRITA PELO LEITE

Foi com base nessas questões que mais de 7 mil produtores rurais do Estado se uniram neste mês, em Belo Horizonte, para dar início ao movimento “Minas Grita pelo Leite”. Para se ter uma ideia, segundo a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais (FAEMG), em 2023, a importação de leite em pó cresceu 68,8% em relação a 2022, para o equivalente a 2,2 bilhões de litros. Desse total, 53,5% vieram da Argentina e 35,8% do Uruguai. Em 2023, as importações de leite em pó feitas por Minas Gerais somaram US$ 62,6 milhões, que deixaram de ser aplicados na produção local.

Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), como integrantes do Mercosul, os dois países são isentos da Tarifa Externa Comum (TEC) cobrada de países que estão fora do bloco, desestruturando a cadeia produtiva do leite. Com isso, o preço médio pago pelo litro de leite ao produtor rural mineiro caiu de R$ 2,71, em 2022, para R$ 2,11, em 2024.

Assim, a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) anunciou que irá protocolar uma petição para a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) investigar a adoção de direitos antidumping na importação do leite em pó de países do Mercosul. O objetivo é evitar que os produtores nacionais continuem sendo prejudicados por importações de leite a preços inferiores às do mercado interno, uma prática considerada desleal.

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MINAS GRITA PELO LEITE

FRED SEIXAS – O que foi o “Minas Grita pelo Leite”?

JOÃO MARQUES –Na verdade, o tema “Minas Grita pelo Leite” foi elaborado pela nossa Federação, a FAEMG [Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais], que nos representa no estado de Minas, ou seja, nosso sistema sindical. E foi aderido pelos demais entes, cooperativas, empresas e, principalmente, produtores, no sentido de mostrar o momento em que vive a atividade leiteira no nosso País.

Estamos no Estado que produz ¼ do leite brasileiro. É um volume expressivo do leite. Todos os municípios mineiros produzem leite. E a gente sabe que na base da economia desses municípios, o leite faz parte diretamente.

A [atividade leiteira tem ainda] uma importância social. Na cooperativa, nós captamos leite em 52 municípios aqui no Vale do Rio Doce. E a gente tem uma percepção muito clara: quando o leite é pago ao produtor, esse recurso vai para o vaqueiro, para o tratorista, para o cerqueiro, enfim, para a comunidade, em geral. Porque o cerqueiro [depois] paga a padaria, paga o comerciante, à pequena mercearia. Então esse recurso é um recurso que circula aqui no nosso Estado, no nosso País, na nossa região. Então a atividade leiteira é de suma importância econômica e social para o nosso Estado. 

OBJETIVO DO MOVIMENTO

FRED SEIXAS – Qual foi o objetivo do “Minas Grita pelo Leite”? Qual a mensagem que o evento queria passar?

JOÃO MARQUES – A mensagem é justamente essa: não dá. Precisa dar um basta na importação desenfreada de leite que tem ocorrido, principalmente do Mercosul, que vem da Argentina e do Uruguai. O leite gera emprego na Argentina, que o transportador é de lá, e como fica a economia brasileira? Como ficam as nossas bases?

A gente precisa mostrar a nossos governantes e a sociedade para unirmos forças e mudar, dar um basta nessa importação desenfreada e fazer o contrário: valorizar o pequeno produtor. Hoje, na nossa cooperativa, mais de 70% dos produtores são pequenos produtores rurais. E a gente sabe que [o trabalho deles] é uma injeção na veia, que vai fazer a economia daquele município girar. O leite importado gera essa economia? Essa é a pergunta que a gente precisa fazer para nós mesmos. E a gente está concorrendo com um leite subsidiado. A Argentina fez um trabalho de base, para a produção de leite, e subsidia o produto lá. Então ao chegar aqui esse produto não traz benefício. Especialmente para o consumidor!

Hoje parece atrativo ter o leite importado, com a economia leiteira em dificuldade, mas no futuro não será. A médio e longo prazo o consumidor vai pagar caro por isso, porque a gente está vendo os nossos produtores deixando a atividade, que é feita de sol a sol. O produtor rural, faça sol ou chuva, ele está trabalhando. O transportador também, mesmo quando fica atolado em lama, ele não deixa de trabalhar para levar o leite até a indústria, que, por sua vez, também gera trabalho e emprego. Depois o leite é transportado de novo até o supermercado, que também gera trabalho. Então estamos falando de algo muito importante. Então queremos unir essas cadeias [produtivas], que seja dos produtores, das indústrias, do transportador e do consumidor, para juntos darmos um grito, para que nossos governantes ouçam: “Minas grita pelo leite”. Mas não é só isso. O Brasil grita pela importância da atividade leiteira.

DESAFIOS DOS BRASILEIROS

FRED SEIXAS – Mas qual a necessidade do Brasil importar o leite se ele é um grande produtor?

JOÃO MARQUES – Pois é. Estamos falando de um País continental. Se compararmos com a Argentina e o Uruguai, competiria com um estado brasileiro. Talvez nem com o maior. E ele tem superávit, consegue exportar leite. E nós ainda não passamos por essa transformação. A gente precisa construir um programa permanente, um programa de governo mesmo, onde a gente valorize a cadeia, onde as pessoas se sintam estimuladas a produzir. Não é fácil produzir, então, precisamos criar um ambiente favorável para essas pessoas, que amam e dependem da atividade leiteira. Não podemos perder essas pessoas que já estão no campo, porque elas já têm afinidade, amor pela atividade. O meu pai fez isso ou meu avô trabalhou nessa atividade e estou aqui porque amo isso. Mas eu amo até o momento em que posso sobreviver. Então é importante entender esse momento e criar políticas públicas favoráveis para a produção de leite, para que a gente tenha um leite com a qualidade ideal, e para que a gente possa produzir mais com menos, ou seja, usar as tecnologias disponíveis. Elas [tecnologias] já existem, mas, às vezes, o produtor não consegue usá-las porque já está com a atividade aviltada. A situação dele já não permite fazer investimento, até pelos altos e baixos da atividade: um ano é melhor, o outro é pior. Então ele precisa de uma política pública para que possa acreditar, investir e promover a ação social que o leite promove muito bem em nosso País.

FRED SEIXAS – O custo para o brasileiro produzir leite é maior do que na Argentina ou no Uruguai?

JOÃO MARQUES – O custo é bem maior. Primeiro porque somos um Estado continental, com questões climáticas divergentes. Neste último ano, por exemplo, passamos setembro, outubro e novembro e só choveu em dezembro. O produtor depende dessa questão climática e de questões estruturais que não temos estabelecidas. Precisamos de estradas rurais melhores, energia estável. Eu tenho uma propriedade aqui em Valadares, a menos de 50 km, e no último mês faltou energia 8 vezes na propriedade. As redes estão ficando velhas, estão dando problema. Então a gente está precisando de infraestrutura, de uma política pública voltada para essas pessoas que produzem, enxergando a importância que elas têm, e enxergando que a economia leiteira gera resultados nos municípios para diversas pessoas.

CONSEQUÊNCIAS DA IMPORTAÇÃO

FRED SEIXAS – A importação poderia então acabar com a produtividade leiteira?

JOÃO MARQUES – Já ocorreu em vários países. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum apenas um produtor produzir 30 mil litros de leite por dia, por ser um grande produtor. A nossa realidade é diferente, é de pequenos produtores que produzem 100 litros, 200, 300, ou até mesmo menos de 100 litros por dia. Então em outros países a produção segue um molde industrial: poucas propriedades produzindo muito. No Brasil, é o contrário. Nós temos muitas propriedades produzindo menos. O que precisamos é fazer com que essas pessoas se desenvolvam e se tornem pequenas empresas familiares, geradoras de emprego e renda para as pessoas que estão ali nas propriedades. Com o uso da tecnologia e políticas públicas podemos fazer isso. Por que não podemos ser o maior exportador de leite mundial? Nós já somos de soja, já somos de milho, por que não o leite? Nós só precisamos de políticas públicas adequadas. É isso o que pedimos aos governantes. Esse é o nosso grito de desabafo: enxerguem a cadeia produtiva como uma cadeia importante, que não é apenas produzir leite, mas estabelecer capacidade de sobrevivência para as pessoas que lidam com essa atividade.

FRED SEIXAS – Se o produtor rural hoje decidisse parar de produzir por causa dessa importação, como a economia e o consumidor seriam prejudicados?

JOÃO MARQUES Primeiro: como essas pessoas podem parar? A gente tem visto pequenos produtores chegarem ao caos, terem que vender o pequeno terreno que têm e mudar de atividade. Culturalmente ele já está naquela atividade, já conhece e ama aquilo. Então o primeiro choque é o emocional. A atividade leiteira não é feita somente por questão econômica. Ela é por paixão de viver na roça, por herança de amor pela atividade.

O segundo é um choque das metrópoles. Essas pessoas virão para o grande centro trabalhar onde? Para fazer o quê? Qual o preparo que elas têm para mudar a atividade?

Hoje não temos no Brasil nenhuma atividade que tenha a logística estruturada como a do leite. O produtor poderia produzir hortaliças, frutas, etc? Poderia, mas tem algum caminhão que passa na porta e pega a hortaliça e traz para o grande centro? Poderíamos produzir peixe, outras coisas, mas não tem uma logística estruturada. Mas o leite tem uma estrutura logística muito importante.

Então se essas pessoas pararem a atividade elas não vão saber para onde ir. A cadeia do leite já está estabelecida, já está demonstrada a capacidade dela de produzir riquezas e a gente pode até agregar a ela outras atividades no meio rural, para que essas pessoas aprendam e evoluam. Hoje a Cooperativa faz isso. Ela é uma cooperativa de pessoas e nossa principal preocupação são as pessoas. A produção de leite é importante para colocar alimento na mesa de pessoas, para levar a outras pessoas, o consumidor, um produto de qualidade, produzido aqui. Por isso eu tenho que ter orgulho de consumir uma carne que foi produzida no Vale do Rio Doce. Não só os da Cooperativa, mas de outras que produzem aqui na nossa região. Temos que valorizar isso porque é feito com muito carinho, zelo e amor.

[Além disso] se essas pessoas deixam de produzir, eu acredito que no futuro quem vai pagar caro por isso é o elo da cadeia mais importante, que é o consumidor. Porque se falta na produção, o preço sobe. Hoje a Argentina tem essa competitividade, mas e amanhã? Se o mundo precisar do leite argentino ele vai pra onde? Quem vai pagar mais caro é o consumidor. Então a gente tem que pensar e criar uma cadeia em que o Brasil seja autossuficiente no volume de leite, inclusive, exportando essa produção, colocando lá fora, mostrando a nossa força e o nosso trabalho.

RESULTADOS DO MOVIMENTO

FRED SEIXAS – Esse movimento já surtiu algum efeito?

JOÃO MARQUES – Já percebemos alguns movimentos. O Estado de Minas Gerais e Goiás já fizeram algumas mudanças. Em Minas, o governador [Romeu Zema (NOVO)] anunciou a compra do leite produzido no Estado para as escolas estaduais. Já é uma injeção direta na veia, porque é a possibilidade do consumo direito desse leite. Além disso, o Estado de Minas já promoveu e publicou na última semana algumas mudanças na tributação do leite importado. Essas mudanças tributárias podem ser positivas e negativas, porque enquanto Minas veta, outros estados permitem. Então precisamos fazer um movimento maior. A mudança na legislação é importante, mas precisa ser feita de forma global. O que a gente espera mesmo é uma posição do governo federal.

Esse leite que vem do Mercosul tem suspeita de dumping, que é quando o produto vem de outros países sem que eles sejam os produtores. Isso precisa ser investigado. O governo federal também precisa ver a questão da tributação dessas importações, porque o setor de laticínios foi penalizado, mas os maiores importadores são a indústria de confeitaria, os supermercados, as fábricas de chocolates, sorvetes e biscoitos. Eles importam direto para as indústrias e não dependem do leite brasileiro. Então precisamos de uma mudança, uma ação geral, e não apenas para o setor de laticínios.

Já levamos projetos e ações estruturadas ao governo federal e esperamos que surtam efeitos no curto prazo, para que a gente possa reverter essa situação.


Na entrevista, João Marques falou ainda sobre como a Cooperativa tem contribuído para o desenvolvimento da produtividade leiteira na região. Também explicou alguns programas de educação, fertilização e de gestão que têm sido disponibilizados aos produtores do Vale do Rio Doce. Vale ressaltar que o Governo de Minas anunciou, após a ação dos produtores do Estado, que vai retirar as empresas importadoras de leite em pó do Regime Especial de Tributação. Com isso, elas passam a pagar o ICMS de 18% na venda dos produtos importados. Confira a entrevista completa em nosso site ou em nossos canais no Youtube e Spotify.

Comments 1

  1. Clenilton Rodrigues Costa says:

    Muito oportuno, pois não está fechando as contas o custo pra produzir o leite. Irá ter um êxodo rural para os grandes centros, já inchado com moradores de rua.
    Desde já agradeço.

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