“Freed from desire” é a música do momento. Um eletropop flagrantemente europeu, com todos os ingredientes de um hit chiclete típico dos anos 1990. Não por acaso, a música é de 1996 e pertence a uma cantora europeia, a italiana Gala. O som está gravado como tatuagem na mente de quem acompanha o torneio mundial de clubes organizado pela FIFA. Eu, por exemplo, me pego cantando alguns trechos a todo instante.
É sempre didático quando o mercado prova que, fazendo as associações certas e investindo forte em mídia, as ideias costumam se provar viáveis e, especialmente, que não existe música velha. Dois meses atrás, se um DJ ousasse tocar Gala em uma festa para jovens, seria rechaçado pela indiferença dos convidados ou — muito pior — rotulado como tiozão do baile, alguém ultrapassado. Agora, com o campeonato rolando nos Estados Unidos e a vinheta com “Freed from desire” onipresente nas transmissões, a música tornou-se o auge de muitas playlists.
Não se trata de um fenômeno inédito. Longe disso. Em 2022 — só para trazer um outro exemplo recente — “Running Up That Hill”, da cantora britânica Kate Bush, uma música de 1985, foi catapultada para as listas de mais executadas após figurar na trilha sonora da 4ª temporada da série Stranger Things. Não são nada estranhas essas coisas, portanto. Basta que a indústria tenha estratégia, coragem e recursos para definir do que é que vamos gostar e o que é que vamos consumir ou compartilhar.
Voltando ao hit de Gala, sua letra traz, em tradução livre, algo mais ou menos assim: “Meu amor não tem dinheiro, ele tem suas fortes convicções / Meu amor não tem poder, ele tem suas fortes convicções / Meu amor não tem fama, ele tem suas fortes convicções.” Isso, aliado ao ritmo frenético e palatável da música, tem um elevado potencial de galvanizar o público, como tem se comprovado nas transmissões e nos memes relacionados ao mundial. O nome do som também é muito certeiro: Livre do desejo (também em tradução livre).
Ironia do mercado, os primeiros versos da música são inversamente proporcionais ao gigantismo da FIFA. Se o amor que Gala entoa não tem dinheiro, poder ou fama, isso é tudo que a entidade máxima do futebol acumula. O mesmo vale para a maioria dos clubes participantes do certame, convertidos em marcas bilionárias, verdadeiras máquinas de emoções e lucros. Seus símbolos alimentam uma fidelidade canina dos torcedores, que mantêm-se presos, por vontade própria (?), no desejo de idolatrar atletas, camisas, distintivos e histórias.
É uma pena que no futebol, mas também em outras áreas, esteja sendo tantas vezes ultrapassada a linha tênue entre o charme misterioso e o apelo essencialmente mercadológico. É como se o esporte fosse uma floresta que tem sido explorada de forma bastante acelerada, mas ainda está de pé e forte. O branding, o marketing, os investimentos — tudo isso é importante, faz parte do jogo — inclusive, para algumas florestas. Mas a performance não pode prevalecer sobre o sonho. Se a magia acaba, tudo torna-se uma relação puramente comercial. Assim, o desejo pode até não morrer, mas fica bastante pragmático.
A propósito, os times da América do Sul fizeram muito bonito até o momento no mundial. Com desempenhos convincentes, todos os brasileiros passaram da primeira fase. Os argentinos Boca Juniors e River Plate não tiveram o mesmo sucesso em campo, mas suas torcidas promoveram espetáculos — o que não é pouca coisa, já que é essa paixão que, mesmo nos tempos de seca, mantém a “floresta” de pé. Isso tudo me lembrou da música “Para Kendrick e Kanye”, do rapper cearense Don L. Ele diz assim no refrão: “Eu sou do sul da América / E vocês nunca vão saber, não fazem como eu fiz / Porque vocês não sabem.”
O rap presta linda — e justa — homenagem a “Para Lennon e McCartney”, canção de Milton Nascimento composta por Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant — os três, por sinal, foram inseridos entre os coautores da música do Don L. Se a letra dos mineiros mandava um recado aos dois mais famosos Beatles, o artista nordestino aponta sua caneta para dois rappers consagrados: Kendrick Lamar e Kanye West. Tomara que eles saibam disso, porque o som é massa. Também é verdade que seguimos presos a muitos percalços e não temos tanto dinheiro, poder e fama quanto boa parte do Hemisfério Norte. Mas, como no som de Gala, seguimos tendo nossas fortes convicções.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: b-villela.medium.com
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