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Experiências traumáticas: quando a mente trava

(*) Dr. Lucas Nápoli

À medida que o vocabulário psicológico e psicanalítico foi penetrando na cultura desde o final do século XIX, algumas expressões se tornaram populares e passaram a ser utilizadas de forma imprecisa, o que contribuiu para fomentar uma visão reducionista das teorias psicológicas e psicanalíticas. Uma dessas expressões é a noção de trauma (no sentido psíquico do termo). Não raro ouvimos pessoas dizerem que são como são porque passaram por traumas quando eram crianças. Além disso, muita gente acredita que, para a Psicologia e a Psicanálise, as únicas causas dos transtornos psicológicos são traumas psíquicos vivenciados na infância.

A bem da verdade, não podemos deixar de reconhecer que a Psicanálise contribuiu em alguma medida para que crenças como essa penetrassem no senso comum. Com efeito, a primeira hipótese formulada por Freud para explicar a histeria (forma de adoecimento psíquico mais prevalente na Europa do final do século XIX) fora a de que os sintomas físicos apresentados pelas pacientes histéricas eram tentativas inconscientes de libertação de traumas infantis (no caso, abusos sexuais). Contudo, Freud abandonou essa hipótese ao constatar que o trauma real não era uma condição necessária para que uma pessoa viesse a apresentar sintomas histéricos. O médico vienense acabou percebendo que o fator que efetivamente predispõe uma pessoa a desenvolver uma neurose na vida adulta é a postura excessivamente defensiva que ela adota em relação às memórias relacionadas à sua sexualidade infantil, independentemente de ter passado por um abuso sexual.

Esse desenvolvimento das ideias de Freud parece ainda não ter sido incorporado pela cultura popular. O senso comum continua acreditando que o adoecimento psíquico deriva diretamente da ocorrência concreta de traumas na infância. O problema talvez seja a concepção de trauma com a qual trabalha a cultura popular. A maioria das pessoas acredita que um trauma psíquico é sempre resultante de um acontecimento real localizado no tempo e no espaço que necessariamente envolve alguma forma de violência, seja física ou psicológica. Embora muitos traumas estejam relacionados a eventos dessa natureza, é importante esclarecer que, pelo menos do ponto de vista psicanalítico, um trauma é um acontecimento de ordem especificamente psíquica, ou seja, que não depende necessariamente da existência de um evento externo datável.

Na verdade, é possível que uma mesma experiência vivenciada por diferentes pessoas seja traumática para algumas delas, mas não para outras. Isso acontece porque o trauma não é uma mera consequência do evento externo, mas deriva da representação que esse evento teve na mente do indivíduo que passou por ele. Explico: todas as experiências que vivenciamos passam por uma espécie de “tratamento” pela nossa mente. Utilizo aqui a palavra tratamento no mesmo sentido que um fotógrafo a utiliza ao dizer que precisa tratar as fotos com que trabalha em um programa de edição de imagens. Nesse sentido, podemos dizer que nossa mente edita nossas experiências, enquadrando-as de acordo com as representações que nela já estavam “armazenadas”.

Esse “programa” que nossa mente utiliza para “tratar” as experiências que vivenciamos pode ser mais ou menos potente dependendo da história de vida da pessoa e de sua faixa etária. Nas crianças, esse programa ainda é muito precário, possuindo poucos recursos e poucas informações armazenadas. É por isso que a maioria dos traumas que geram impacto significativo na vida das pessoas acontece na infância. Com efeito, do ponto de vista psicanalítico, uma experiência traumática é aquela que ultrapassa a capacidade de elaboração do indivíduo, ou seja, em nossa analogia é a experiência que não pode ser tratada pelo programa de edição utilizado pela mente. O trauma é um “arquivo” tão pesado que acaba “travando” o programa.

No entanto, é preciso reiterar que esse “travamento” depende tanto do peso da experiência quanto da capacidade de elaboração da mente. Quanto mais robusto for o programa de edição mental, maiores arquivos ele será capaz de tratar. Na infância, esse programa é ainda muito rudimentar. Por isso, experiências que um adulto conseguiria facilmente elaborar podem se converter em traumas para as crianças.

É possível evitar a ocorrência de traumas? Absolutamente não. Afinal, não é possível saber de antemão quais experiências a mente será ou não capaz de elaborar. Por outro lado, é possível “desfazer” o trauma. Isso acontece por meio do aumento da capacidade do programa de edição mental, ou seja, por meio da adição de recursos e informações que tornarão possível o tratamento da experiência que provocou o travamento. Esse processo de aperfeiçoamento da capacidade de elaboração psíquica é um dos objetivos de um trabalho psicoterapêutico. Mediante o diálogo peculiar que se estabelece entre paciente e terapeuta, o aparelho psíquico do paciente vai gradualmente adquirindo mais capacidade de processamento, diminuindo as chances de novos “travamentos”.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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