No cinema, e na maioria das histórias que contamos, é muito comum a presença da tradicionalíssima estrutura de três atos. Basicamente, o primeiro ato envolve a apresentação, quando há a introdução dos elementos essenciais da história, a fim de situar o leitor/ espectador/ ouvinte/ interlocutor. No segundo ato dá-se o confronto, quando a coisa pega fogo, com conflitos, ação e um desenvolvimento mais intenso da trama. A resolução fica reservada ao terceiro ato, sendo o momento em que os entraves se dissipam, tudo se ajusta. Claro que a evolução natural das narrativas já criou muitas vertentes, variações e quebras nessa estrutura. Mas ela segue sendo a clássica, a base para se contar a maioria das histórias na sociedade.
Pois bem. Se um ano fosse uma história — não é bem assim, mas gostamos de pensar que é —, a gente, ainda em janeiro, estaria na fase da introdução. A configuração de tudo, a apresentação dos personagens, seus pormenores e por aí vai. Acontece que antes mesmo do final do seu primeiro mês, 2025 está vivendo todos os atos de forma concomitante. Em poucos dias, o Brasil já conquistou um Globo de Ouro com a exuberante Fernanda Torres. O cinema mundial perdeu a mente inventiva, ousada e surrealista do magnífico David Lynch. O jornalismo esportivo se despediu da alegria, da obstinação e da simpatia de Léo Batista. Trump tomou posse e assinou uma avalanche de decretos, com impactos em tudo e em todos. A imprensa ainda não deu conta de digerir. A sociedade, tampouco.
Nestes dias quentes e alucinantes, que parecem ter sido escritos por Gabriel García Márquez e dirigidos por Pablo Larraín, haveria espaço para mais emoções? Sim! “Ainda Estou Aqui” acabou de ser indicado para três categorias no Oscar, incluindo o fato doce de termos uma filha repetindo o feito da mãe; e o marco absolutamente histórico de termos uma obra nacional indicada a melhor filme. Uma glória a ser comemorada pela nossa cultura com pompa e circunstância. Juro que as palavras seguintes não são conversa de perdedor ou pessimista, mas, a partir de agora, importa menos o resultado. Já temos um filme brasileiro indicado a melhor película de 2024!
Para você entender a dimensão dessa conquista, tente fazer um exercício. Imagine sua profissão, sua atuação, seu ganha-pão. Agora, pense que uma instituição consagrada e respeitada mundialmente na sua área incluiu seu trabalho entre os dez melhores de 2024. Há inúmeros médicos no mundo, e você está entre os dez melhores. São incontáveis os professores, mas você figura entre os dez primeiros. Jornalistas, quantos há? Não importa, você de repente está entre os dez maiores de um determinado período da história. Tente imaginar quantos filmes foram produzidos no planeta em 2024 e falhe miseravelmente. Mas, como diz o baiano, a “fé não costuma faiá”, e “Ainda Estou Aqui” está lá. Este é o tamanho do protagonismo brasileiro e latino que estamos testemunhando.
Outro latino que não sai de cena — há bastante tempo, mas sobretudo em 2025 — é Bad Bunny. O cantor porto-riquenho, bastante acostumado ao topo, fez o que parecia impossível ao elevar seu gigantismo com o álbum “Debí Tirar Más Fotos”, lançado na primeira semana deste ano. O disco é uma delícia. Tem ginga, tem energia, tem alegria. É, afinal, latino! Mas trouxe também toda uma carga de críticas à situação de Porto Rico — território dominado pelos Estados Unidos —, abordando aspectos como o apagamento cultural e a gentrificação.
De muitas maneiras, “Ainda Estou Aqui” e o álbum de Bad Bunny dialogam entre si e com o passado, o presente e o futuro da América Latina e do planeta. Ambos são retratos de uma vigília que não pode cessar, mas que nem por isso precisa prescindir do entretenimento. Foi com diversão e contestação que fizemos a MPB dos anos 1960 e 1970 — Chico, Caetano, Gil, Geraldo Vandré etc. Foi com irreverência e questionamentos que o pop e o rock nacional marcaram os anos 1980 e 1990 — Legião Urbana, Plebe Rude, Titãs, Chico Science & Nação Zumbi, Planet Hemp etc. É com coragem e pulsão de agregação que o rap e o funk se organizam, fazem dançar e pensar.
De Porto Rico e do Brasil, 2025 já embarcou tesouros para a humanidade. Em tempos de uma imprensa tão desgastada (mas tão necessária), a música e o cinema podem apontar caminhos — e enredos. Mais arte e mais ousadia para contar histórias. Por sinal, as cadeiras brancas de plástico da capa de “Debí Tirar Más Fotos”, em um cenário tropicalíssimo, assentam-se em uma conexão perfeita com nosso cotidiano. Mais do que isso, quero pensar que acentuam um alerta já bastante difundido, mas que insistimos em ignorar: para ver e fazer a história, não podemos ficar sentados.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.