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Crise de ansiedade, desespero e perfeccionismo

Dr. Lucas Nápoli (*)

Um dos maiores problemas que vivenciamos atualmente no campo da saúde mental é o fenômeno conhecido como “medicalização”. Ao contrário do que muitas pessoas leigas (e até especialistas mal formados) pensam, medicalização não se refere à prescrição indiscriminada e excessiva de medicamentos – problema que, aliás, também é bastante preocupante. Medicalização se refere à tendência contemporânea de tratar questões de ordem social, moral ou comportamental como problemas de saúde que precisam de tratamento especializado.

Após atender dezenas de pessoas que diziam ter passado por “crises de ansiedade”, posso dizer com segurança que, na maioria das vezes, essa expressão não é utilizada para designar um estado que possa ser adequadamente rotulado como um problema psicopatológico. Tenho fortes razões para crer que o que as pessoas geralmente chamam de “crise de ansiedade” é um estado psicológico já bastante conhecido, que tradicionalmente recebe o nome de desespero.

Com efeito, uma crise de ansiedade, para ser digna de tal designação, deveria apresentar os sintomas típicos de um quadro de ansiedade em grau bastante elevado. E que sintomas são esses? Apreensão, taquicardia, sudorese, falta de ar, boca seca, dentre outros. Dito de outro modo, uma crise de ansiedade seria o que tecnicamente chamamos de “pânico”. No entanto, a maioria das pessoas que relata ter passado por uma crise de ansiedade descreve essa experiência como um momento de grande aflição e mal-estar que geralmente desemboca em choro. Ou seja, trata-se de um estado psicológico significativamente distinto do que tecnicamente chamamos de ansiedade.

Por que é importante fazer essa distinção? Porque quando utilizamos o termo “ansiedade” para caracterizar um estado psicológico que melhor seria descrito como desespero enquadramos tal experiência como um fenômeno psicopatológico, ou seja, como um sinal de adoecimento psíquico. Em outras palavras, quando dizemos “estou vivendo uma crise de ansiedade” ao invés de “estou passando por um momento de desespero” temos a tendência a imaginar que precisamos de tratamento médico/psicológico – o que muitas vezes não é necessário.

Desesperar-se não é uma patologia psíquica, mas uma reação desordenada que podemos experimentar diante de problemas importantes para os quais não conseguimos enxergar uma saída. Por exemplo, quando não conseguimos encontrar tempo suficiente para estudar para uma prova, quando alguém que amamos muito decide terminar o relacionamento conosco, quando estamos diante de uma demanda de trabalho que não conseguimos solucionar etc. É natural sentir-se impotente e desamparado frente a situações como essas. Contudo, isso ainda não é o desespero. É a partir do momento em que não aceitamos as limitações impostas pela realidade que começamos a nos desesperar. Ou seja, o desespero nasce quando continuamos a buscar formas de escapar de becos sem saída.

Não por acaso, as pessoas que mais costumam se queixar das tais crises de ansiedade (que já vimos ser apenas o termo medicalizado para desespero) são indivíduos que padecem do que costumamos chamar no senso comum de “perfeccionismo”, ou seja, a busca pela excelência como único resultado possível. As pessoas perfeccionistas são escravas das imagens idealizadas de si mesmas. Por isso, trabalham incansavelmente para satisfazer o seu eu ideal e, como todo escravo, são punidas quando não conseguem executar um bom trabalho. Nesse caso, a punição vem na forma da culpa e do desespero. Oprimido pelo eu ideal, o perfeccionista não aceita suas falhas, tropeços e limitações. Assim, a simples impossibilidade de estudar para a prova do dia seguinte transforma-se numa catástrofe imensa e o indivíduo tem a impressão de que ele está sendo condenado à perdição eterna. É daí que vem o desespero.

Entendeu? Você entra na tal crise de ansiedade, isto é, você se desespera quando perde o senso das proporções. Uma prova, por exemplo, nada mais é do que um elemento de um processo avaliativo de uma disciplina de graduação. Nada mais do que isso. Será mesmo que se você tirar uma nota baixa numa avaliação a sua vida inteira estará arruinada? Será que a sua existência vale tão pouco a ponto de ser reduzida a uma prova que o professor pode ter preparado às pressas em meio a um episódio e outro de uma série da Netflix? Portando, se você se desespera por conta de uma prova, trata-se de uma reação desproporcional. Você está mobilizando recursos afetivos imensos para algo ínfimo, pequeno, irrelevante do ponto de vista da existência como um todo.

Essa perda do senso das proporções é um dos principais danos causados pelo perfeccionismo. Quando entendemos que é necessário atingir a excelência em absolutamente tudo o que fazemos, deixamos de discriminar o que vale a pena e o que não vale, o que merece sacrifício e o que pode ser negligenciado, o que precisa ser feito agora e o que pode ser procrastinado.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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