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Como lidar com pessoas tóxicas – parte 02

Dr. Lucas Nápoli (*)

Na coluna anterior mencionei que uma das razões que motivam as pessoas a procurarem a ajuda de um psicólogo clínico é o sofrimento resultante da convivência com pessoas tóxicas. Expliquei que a maneira mais efetiva de lidar com tais pessoas é afastando-se delas. Contudo, muitos pacientes buscam terapia justamente porque não conseguem sozinhos tomar as providências necessárias para romperem o relacionamento com pessoas tóxicas ou tal rompimento se mostra temporariamente inviável.

No primeiro caso, ajudamos o paciente a fortalecer o seu Eu, de modo que o afastamento acaba acontecendo naturalmente à medida que o sujeito passa a ter cada vez mais respeito por si mesmo. Já no segundo caso, quando o afastamento não pode ser feito no momento, o objetivo do tratamento passa a ser não só o fortalecimento do Eu, mas também o desenvolvimento de uma espécie de blindagem psicológica capaz de proteger o indivíduo dos efeitos deletérios produzidos pela convivência com pessoas tóxicas. É sobre como adquirir essa blindagem que falarei neste artigo.

A condição fundamental para o desenvolvimento dessa blindagem psicológica contra pessoas tóxicas é a renúncia ao desejo/expectativa de que o outro mude. Muita gente que convive com pessoas tóxicas nutre dia após dia o anseio de que elas se transformem e deixem de ser tóxicas. Não raro, por exemplo, vemos mulheres religiosas fazendo inúmeras orações pela mudança de seu marido, o que acaba contribuindo para que sofram ainda mais, visto que, ao sofrimento decorrente da própria convivência com o esposo, elas adicionam a dor de não serem atendidas em suas preces.

Veja: nós não temos controle sobre o comportamento de outras pessoas; apenas sobre o nosso (e olhe lá…). Portanto, tentar mudar o outro ou mesmo conservar em si o desejo de que o outro mude é uma receita infalível para se viver permanentemente frustrado. O outro só mudará se quiser ou se fatores que não temos como controlar o levarem à mudança. Nesse sentido, o primeiro passo para a blindagem psicológica é tratar o comportamento tóxico do outro não como algo que pode ser modificado, mas como uma realidade praticamente inalterável tal como uma montanha ou um rio. A gente sabe que o outro pode mudar, mas, como não temos controle sobre isso, é melhor viver como se essa mudança jamais fosse acontecer. Dessa forma, evitamos o sofrimento de ver nossa expectativa sendo diariamente frustrada e investimos a energia que seria gasta com ela em estratégias para lidar com a realidade desfavorável.

O segundo elemento crucial para a conquista da blindagem psicológica é a capacidade de enquadrar adequadamente as ações e palavras emitidas pelas pessoas tóxicas. Esta é a habilidade que torna possível neutralizar os efeitos destrutivos daquilo que o outro diz e faz em relação a nós.

O que significa enquadramento? Veja: ao contrário do que muita gente imagina, o impacto emocional dos acontecimentos sobre nós não resulta exclusivamente das propriedades dos acontecimentos, mas, principalmente, do enquadre interpretativo que damos a eles. Explico: imagine que você está numa praça onde os pais costumam levar seus filhos para brincar e, de repente, uma das crianças, de aproximadamente quatro anos de idade, começar a te chamar de “gorda, balofa, baleia”, dentre outros insultos. Você se sentiria ofendida? É provável que sim, mas numa medida muito inferior à que você experimentaria se recebesse exatamente as mesmas ofensas por parte de uma colega de trabalho. Ora, se os insultos são idênticos, por que você se sentiria muito mais ofendida na segunda situação do que na primeira?

Tenho certeza de que você respondeu: “Ah, Lucas, porque, no primeiro caso, quem me ofendeu foi uma criança de quatro anos. Não se pode levar muito a sério o que uma criança dessa idade diz”. Perfeito! O fato de saber que os insultos foram proferidos por uma criança faz você interpretá-los como uma experiência desagradável, mas irrelevante. O mesmo não aconteceria se a colega de trabalho tivesse te ofendido. Nesse caso, você se sentiria muito mal, pois pressupõe que uma adulta seja consciente do peso, do significado e das consequências de se insultar alguém daquela forma.

Percebeu? As ofensas, em ambas as situações, foram as mesmas. O que mudou foi o contexto e, com o contexto, a forma como você enquadrou cada uma das situações. Enquadrar é isso: atribuir níveis de significação, relevância, dentre outros atributos interpretativos aos acontecimentos. O resultado do enquadramento é o efeito emocional dos acontecimentos sobre você. Nesse sentido, se eu quiser minimizar o impacto emocional das ações e palavras do outro sobre mim, tudo o que preciso fazer é enquadrá-los da maneira adequada.

Por exemplo, vamos supor que você se veja forçado a conviver na universidade com um professor tóxico que satisfaz suas fantasias sádicas com a desculpa de estar apenas preocupado com a qualidade acadêmica. Ao lhe entregar uma prova em que você obteve nota baixa, o docente se aproveita da situação e diz que você não é digno de estar naquela universidade. O que você pode fazer para se proteger do estrago emocional que tal fala poderia gerar? Ora, você pode enquadrar o que o professor disse como uma bobagem irrelevante que não reflete a realidade, mas tão-somente o sadismo do professor. Eu sei que fazer essa operação mental não é fácil, mas é possível desde que você esteja ativamente engajado na tarefa de se blindar psicologicamente.

Ninguém nasce com essa blindagem assim como ninguém nasce preparado para lidar com doenças como varíola e catapora. Portanto, assim como tomamos vacina para lidar com um ambiente cheio de agentes patogênicos, também precisamos construir ativamente nossa blindagem psicológica para nos protegermos de pessoas tóxicas.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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