Como diminuir as desigualdades tratando outros de forma desigual?

FOTO: Kissyla Pires

Pode até parecer estranho e injusto ser desigual para acabar com a desigualdade, mas o princípio por trás deste pensamento é o que conhecemos hoje como inclusão

GOVERNADOR VALADARES – Já na Grécia antiga, o filósofo Aristóteles (384 a.C) defendia que para combater desigualdades é necessário primeiro reconhecê-las e tratar os desiguais de forma desigual, conforme suas desigualdades. O princípio por trás do pensamento ainda é a solução para a diversidade da sociedade atual.

Mantendo esta premissa, o professor, mestre e doutor Edmarcius Carvalho, coordenador do Espaço A3 da Univale, explica como a inclusão passa por esse caminho e o que tem sido feito no espaço acadêmico para que todos tenham acesso e condições de obter uma graduação.

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FRED SEIXAS – Do que se trata a inclusão? Quando falamos sobre esse tema, logo vem à mente a questão de deficiências. Mas não é só isso. O que mais está inserido neste tema?

EDMARCIUS CARVALHO – Não é só isso. É óbvio que, historicamente, a luta pela inclusão vem de movimentos de pessoas com deficiência. Mas hoje a sociedade é plural e diversa. E dentro dessas diversidades, esses grupos identitários também lutam pelo reconhecimento na sociedade. Eles apresentam pautas específicas para serem incluídos. E se a gente pensar no que é inclusão, por exemplo, no contexto educacional, será que é colocar todo mundo dentro de uma sala de aula? Todos os alunos, com todas as diferenças dentro da sala de aula? Isso não é inclusão, isso é integração. Eu junto todo mundo no mesmo espaço. Inclusão é todos compartilharem o mesmo espaço, mas terem todas as suas demandas específicas reconhecidas com acesso a recursos necessários para, de fato, serem incluídos.

FRED SEIXAS – Seria, então, dar a essas pessoas [como defendia Aristóteles] o que lhes falta para terem as mesmas condições que os outros?

EDMARCIUS CARVALHO – É a lógica da equidade: tratar os iguais de forma igual e os desiguais de formas desiguais. Por exemplo, ainda dentro deste contexto educacional, dentro de uma sala de aula: uma demanda de um aluno surdo é por um tradutor intérprete de Libras. Já um aluno cego vai precisar de recursos tecnológicos para, por exemplo, ler um livro. Um aluno cadeirante precisa ter a certeza que a arquitetura da instituição de ensino vai estar acessível para que ele entre em todos os ambientes com sua cadeira de rodas. O aluno com deficiência intelectual vai precisar de um planejamento, uma acessibilidade do currículo, para entender até onde ele consegue adquirir algumas habilidades e competências. Então é tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida da desigualdade. Essa desigualdade não se trata de um preconceito, de algo negativo. Na verdade, você reconhece a diferença para atender à demanda a partir daquela diferença. Seria uma discriminação positiva, como explica alguns autores, quando eu reconheço que um sujeito precisa de um recurso específico, porque ele tem uma necessidade específica. Reconhecer isso é discriminar, pois ele precisa de um recurso especial. Mas é positivo porque ele precisa e isso vai ser garantido para ele.

FRED SEIXAS -Como a Univale tem feito isso?

EDMARCIUS CARVALHO – A Univale preza pela inclusão. Dentro da visão da instituição está em ser inovadora, comunitária e inclusiva. Isso é um princípio da universidade e a partir disso, a gente tem uma política institucional de inclusão e acessibilidade, em que prevê quais são os tipos de serviços, programas e ações que a universidade tem para sua comunidade acadêmica, para garantir a inclusão de todos os que precisam de algum atendimento especializado. E aí a gente não fala somente de alunos com deficiência, mas de alunos que compõem outros grupos, por exemplo, alunos que são indígenas, alunos que são transexuais, alunos que eventualmente possam viver alguma forma de preconceito e discriminação em razão de determinado exercício de fé, diferente daquilo que culturalmente a gente entende pelo cristianismo, que é a que tem mais seguidores no Brasil. Então a gente trabalha todas essas possibilidades, além da questão da saúde mental dos alunos, que hoje é um grande dificultador para a inclusão desses grupos no ensino superior. Então garantir que o aluno entre, que ele permaneça e conclua seu curso é um desafio, e a universidade tem toda uma estrutura para executar esses serviços.

FRED SEIXAS – E são muitos alunos atendidos, que precisam desse apoio?

EDMARCIUS CARVALHO – Nós temos hoje na universidade 39 alunos com deficiências, neste semestre. A cada semestre varia. Todos esses alunos que precisam de algum atendimento educacional especializado, ou de apoio psicológico, são atendidos pelo setor chamado Espaço A3, que é o setor que eu coordeno, que é de apoio ao aluno. A gente tem 39 alunos com deficiência. Então para esses alunos é feito um plano individual de desenvolvimento. É construído junto com o aluno o histórico de qual deficiência que ele tem, quais são as questões de habilidades e competências que precisam ser trabalhadas por aquele aluno, com a sala de aula, com os professores, e isso é acompanhado durante o curso. Nós temos outros diversos alunos com TDAH e autistas e temos um número significativo de apoio psicológico. Em 2023 nós tivemos 316 alunos acompanhados por alguma demanda socioemocional.

FRED SEIXASEssas deficiências também são variadas?

EDMARCIUS CARVALHO – Sim. Nós temos diversos tipos de deficiências dentro desses 39 alunos. Na verdade, está em torno de 11 tipos específicos de deficiências. Algumas são associadas a mental, físico, outras são específicas, algumas síndromes e transtornos específicos. A gente acompanha esses alunos o curso inteiro. Assim que ele faz a matrícula ele é encaminhado ao setor. É óbvio que ele precisa aderir ao serviço. Isso não é feito sem a adesão desse aluno, e ele é acompanhado nas práticas de ensino, pesquisa, extensão e estágio. E mais atualmente a gente tem feito algumas ações depois que eles se formam, dentro da política de egresso da universidade, para que as empresas onde ele estagiou, a princípio, vão aderir esses alunos no mercado de trabalho.

FRED SEIXAS – Ainda existe algum tipo de preconceito no mercado de trabalho com os deficientes?

EDMARCIUS CARVALHO – O que a gente consegue acompanhar é que aqueles alunos que são acompanhados durante a formação, e no processo de estágio há essa relação da universidade com o campo de estágio, porque a gente também faz isso, vai na empresa, explica quais são as habilidades do aluno. Dentro dessas habilidades, como ele pode contribuir para a empresa? Então, normalmente, quando eles formam, as empresas continuam com eles, até porque elas têm que cumprir a Lei de Cotas [Lei 12.711/2012]. [Quando] os alunos têm um processo de inclusão bem feito durante a formação, isso impacta na relação dele com o mercado de trabalho. 

De forma geral, o que a gente vê e a própria literatura aponta é que os alunos com deficiência intelectual têm mais dificuldade em acessar o mercado de trabalho, justamente pela não compreensão de boa parte dessas empresas, que entendem que aquela pessoa não tem capacidade de fazer nada, e não. É preciso ver qual é a habilidade e competência que ele tem, dentro das limitações cognitivas, mas tem algo que ele consegue fazer, que ele dá conta de fazer, e transformar isso numa possibilidade de utilização da empresa. Então essa é uma dificuldade.

Outros grupos com deficiência, normalmente, são mais incluídos. Por exemplo, você ter um colaborador surdo na empresa não impacta na questão arquitetônica do local de trabalho. Ele vai subir e descer escada e consegue fazer tudo o que uma pessoa sem deficiência consegue fazer. Nesse caso o desafio é apenas linguístico.

FRED SEIXAS – E o que seria uma deficiência intelectual? Dê um exemplo pra gente.

EDMARCIUS CARVALHO – Hoje a mais conhecida é a síndrome de down. Mas além da deficiência intelectual nós temos também os transtornos. Hoje é um desafio o alto número de alunos com TDAH, que é o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Até pouco tempo atrás, por exemplo, há 20 anos, quando a política de inclusão foi implementada na educação básica, eram aqueles alunos que não ficavam parados e eram alunos “problema”. Hoje a gente entende que não. Esse aluno não é um aluno problemático, ele é um aluno que tem essa deficiência. Então exige um trabalho multiprofissional, um neurologista, um psicólogo, um terapeuta ocupacional para fechar esse diagnóstico, que não é feito em apenas uma consulta. Exige um acompanhamento para entender como aquele cérebro funciona e como é possível pensar na inclusão dele. E esse é um desafio. Como pensar alunos com TDAH e autistas, que são, por lei [Lei 12.764/12], deficiências, e incluí-los naquilo que, de fato, ele precisa.

FRED SEIXAS – É preciso também acabar com essa ideia de que eles não são capazes?

EDMARCIUS CARVALHO – Sim. Nós temos, por exemplo, um aluno com autismo que fez Medicina, e ele queria uma residência na área do Atendimento Familiar. E depois que ele concluiu o curso ele fez seleção de duas residências para outras áreas e ele não quis ir, porque ele tinha certeza que ele queria naquela área e, recentemente, a gente ficou sabendo que ele foi aprovado. Então quando a gente acompanha esse aluno a gente percebe a habilidade que ele tem, e é muito provável que naquilo que ele coloca o foco ele vai atingir, porque tem esse hiperfoco na sua habilidade, naquele interesse específico dele. 


Edmarcius Carvalho é Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia e em Pedagogia. Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Gestão Integrada do Território pela Univale. Especialista em Gestão Acadêmica do Ensino Superior; Docência para o Ensino Superior, Educação e Inclusão – Linha de Formação: Libras, Gênero e Diversidade na Escola, Direito Público e em Gestão Pública, além de MBA em Administração Pública e Gestão de Cidades. É professor, pesquisador e gestor na Universidade do Vale do Rio Doce. Na docência, leciona em Cursos de Graduação e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu de Mestrado em Gestão Integrada do Território. Na pesquisa, coordena o projeto de pesquisa “Políticas de Ações Afirmativas em Instituições de Ensino Superior em Governador Valadares: uma discussão sobre acesso e equidade” e o projeto “Libras, Surdez e Saúde Pública em Governador Valadares Fase 2”. Na gestão coordena o Espaço A3 – Apoio ao Aluno, setor responsável pelo atendimento dos estudantes da Univale, através de programas, serviços e ações educativas. Também compõe o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade e a Coordenação Geral do Simpósio de Pesquisa e Iniciação Científica da Univale. Atua como revisor em diversos periódicos, com temáticas de interesse: direitos humanos, filosofia do direito, Libras, estudos de gênero e sexualidades, estudos territoriais, estudos culturais contemporâneos.

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