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Com que régua você se mede?

Dr. Lucas Nápoli (*)

Agora há pouco, antes de vir escrever este artigo, eu estava assistindo a um vídeo do canal “Não Minta Pra Mim”, no qual o autor Ricardo Ventura analisava a linguagem corporal da mãe e do padrasto do menino Henry durante uma entrevista para a televisão. Creio que não preciso expor aqui as circunstâncias que envolveram a morte do garoto, pois o caso ganhou repercussão nacional. No vídeo, Ventura afirma que um dos requisitos básicos para quem deseja fazer análise de linguagem não-verbal é avaliar o comportamento objetivamente, sem ficar pensando em como você reagiria se estivesse no lugar do sujeito analisado. Em determinado momento do vídeo, o autor diz algo mais ou menos assim: “a régua que vale para o outro não é a mesma que vale para você”.

Neste artigo quero tomar essa ideia como ponto de partida para refletirmos sobre um dos fatores que, de acordo com minha experiência clínica, é um dos que mais contribuem para que as pessoas desenvolvam sintomas de adoecimento emocional e permaneçam psicologicamente enfermas. Trata-se da tendência que todos nós temos de avaliarmos nossa conduta com base em parâmetros externos, alheios à nossa existência.

Eu vou dar um exemplo para ajudar você a entender do que estou falando. Atualmente, tem crescido o volume de conteúdo produzido na internet a respeito de masculinidade. Aparentemente há um consenso entre muitos homens de que a atmosfera sociocultural contemporânea é um ambiente inóspito para a expressão de atitudes e características que compõem o modelo tradicional de masculinidade. De acordo com esse grupo, o mundo atual estimularia os homens a serem emotivos, vulneráveis e passivos, ao mesmo tempo em que condenaria os atributos que caracterizam a virilidade como sendo sinais da chamada “masculinidade tóxica”.

Embora esse diagnóstico não seja de todo incorreto, o que eu quero destacar aqui são as estratégias que esses homens adotam na busca por frear o movimento que eles entendem ter como objetivo a “feminilização” dos homens. Tais estratégias estão organizadas em torno da ideia de que é preciso resgatar o modelo tradicional de masculinidade, constituído de traços como força, segurança, destemor e iniciativa e estimular os homens, especialmente os mais jovens, a buscar alcançá-lo por meio de práticas de autodesenvolvimento, como musculação, artes marciais e abstinência de masturbação.

É aí que entra a ideia mencionada pelo Ricardo Ventura no vídeo citado acima. O efeito colateral produzido pelos conteúdos de desenvolvimento masculino é a sensação constante vivenciada por muitos homens que os consomem de que estão sempre aquém de serem “homens de verdade”. Isso acontece porque, na busca por encarnarem o estereótipo do “homem verdadeiramente masculino”, esses indivíduos passam a medir a própria experiência com uma régua transcendental, idealizada, construída para uma outra época e que apresenta uma extensão sempre mais alta do que a experiência concreta é capaz de alcançar. Assim, muitos desses homens se percebem constantemente insatisfeitos consigo mesmos porque estão sempre mais ou menos distantes do ideal de masculinidade.

Qual a alternativa? A troca de régua. Ao invés de se avaliarem com a régua geral e idealizada do “homem de verdade”, esses indivíduos deveriam utilizar a sua própria régua como parâmetro. Talvez você esteja pensando: “Mas, como assim utilizar a própria régua?”. É mais simples do que parece: trata-se de avaliar nossa vida a partir dela mesma sem compará-la com outras vidas ou com uma vida ideal. É isso que significa construir a nossa própria régua de vida ao invés de tomar como referência uma régua externa, modelar, alheia às nossas circunstâncias e particularidades. Quando tomamos como parâmetro a própria vida para avaliá-la nunca estaremos aquém do que supostamente deveríamos ser. Pelo contrário, saberemos que sempre somos o que podemos ser e estaremos contentes com isso.

O jovem que entra no Instagram em busca de saber o que precisa fazer para ser um homem de verdade, deveria olhar para o próprio jeito de ser e afirmar o homem que já é, com todas as particularidades que o tornam diferente de qualquer outro homem e que fazem dele um homem. Isso o levaria a sentir-se em paz consigo mesmo ao invés de nutrir um sentimento de dívida em relação a um ideal historicamente construído e utópico que nenhum homem concreto é capaz de atingir em plenitude.

Percebo na clínica que muitas pessoas sofrem não porque estejam de fato vivenciando um estado real de impotência, mas porque, ao se medirem por meio de uma régua ideal, só conseguem se perceber como incompetentes e falhos. Portanto, a sensação de impotência é ilusória, fruto de uma autocobrança desmedida, que faz parecer que aquilo que se passa na realidade, aquilo que é efetivamente vivenciado é sempre insuficiente, quando, na verdade, simplesmente é o que é. A comparação com o ideal faz com que olhemos para o real sempre com crítica e menosprezo.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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