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Bolhas

FOTO: Divulgação
por Bob Villela (*)

Furar a bolha. A expressão vem ganhando espaço em muitos contextos — ou bolhas? — nos últimos anos. Recentemente a Folha de S. Paulo, um dos maiores e mais tradicionais jornais do país, lançou uma campanha de assinaturas convidando a sociedade a furar a bolha. Simples e bem executada, a peça traz, sobre um fundo escuro, uma bolha, como aquelas de sabão, uma hashtag com o mote — Fure a bolha. —, uma promoção de módicos R$ 1,90 no primeiro mês e o onipresente QR code para o usuário fazer a assinatura. É impressionante como o QR code foi ressuscitado. Estaríamos, por sinal, vivendo a bolha do QR code?

O material da Folha traz também um texto que explica que bolha é essa. Abordando a polarização, o conteúdo afirma que só a diversidade de ideias promovida pelo jornalismo profissional é capaz de fazer com que saiamos da nossa câmara de eco — quando a gente só vê e ouve conteúdo alinhado com nossa pretensa ideologia, nossos supostos costumes. Faz sentido, embora sempre haja o risco do esforço ser um tipo de pregação para os já convertidos. A velocidade da informação é muito mais vertiginosa do que campanhas ou notícias apuradas. Isso é motivo para reflexão, não para jogar a toalha.

Estar na bolha é produzir, consumir e reproduzir o que a gente acredita. É quentinho e confortável. Mas pode ser perigoso. O Brasil tem quase 215 milhões de pessoas pisando sobre sua face, atravessando realidades tão díspares quanto nossas paisagens. E a formação de bolhas de certezas pode fortalecer “verdades” que não raro convertem-se em aumento do preconceito e da violência, inversões de prioridades e manutenção de iniquidades. Conhecer e entender a realidade dos outros — ou seja, furar a bolha — é o caminho da tal escuta ativa, que tende a gerar respeito, empatia e um desenvolvimento que promove bem-estar para a maioria.

Furar a bolha não é tão simples como parece. Dá trabalho, pede coragem. E é um esforço permanente. Nos anos 1990, os Racionais MC’s assumiram o posto de maior nome do rap brasileiro com o lúgubre e visceral álbum Sobrevivendo no Inferno. O videoclipe da música Diário de um detento frequentou por muito tempo a parada do Disk MTV, uma concorrida seleção diária que exibia os dez clipes mais pedidos pelo público — não me pergunte como rolava essa votação. Com uma pedrada de mais de sete minutos, Mano Brown e seus asseclas estouraram a bolha de pérolas do pop e do rock brasileiro e gringo, cujas superproduções davam cores e apelos aos sons com duração ao redor de quatro minutos. Foi histórico. A música da quebrada que ensina mais sobre o Brasil do que muito livro estava, agora, tocando em carro de playboy. E em português claro.

Corta para os EUA. O jazz, na sua origem, tem relação com a situação vivida pelos negros norte-americanos no século XIX e início do século XX. Nasceu aliviando o peso do trabalho em condições criminosas, quando grupos entoavam canções durante a lida. O som foi se sofisticando e chegou ao nível que percebemos hoje, com clássicos, vertentes e vigor. Curiosamente, o atual desafio do ritmo é popularizar-se, já que ele muitas vezes é visto de forma equivocada como um padrão de música mais afeito às elites. Parece que meu aluno Cauã Salviano tocou no ponto certo. Ele fala que sempre há bolhas. As “do bem”, as “do mal”, a do jazz como história de resistência e genialidade, ou como artifício de gente que quer parecer refinada.

Em Vida loka, Pt. 2, um de seus tantos hinos, os Racionais questionam uma sociedade que ainda pensa que “preto e dinheiro são palavras rivais”. Eles mostraram para muita gente “como é que faz”. Levaram seus sons a muitas bolhas e mantiveram-se fiéis a uma atmosfera da qual não podem se afastar. Sobre preto e dinheiro, a julgar pelas manchetes da Folha e de tantos outros jornais brasileiros, inclusive este DRD, dá para notar que a “rivalidade” entre ambos ainda está longe de acabar. Seguimos, no Brasil, à maneira dos melhores rappers, dando shows (só que os nossos são de horrores) nos palcos do mundo.

Mas longe de mim promover uma bolha de pessimismo. Se é sobre não jogar a toalha, recorro a uma figura sagrada do jazz. Na energizante Ain’t Go No / Got Life, Nina Simone apresenta na primeira parte da canção tudo aquilo que não tem. Ela não tem casa, não tem sapatos, não tem mãe, não tem nada… Em seguida, vira o enredo com potência e enumera tudo aquilo que é dela. Tem os olhos, a boca, tem a si mesma. No final, destaca que tem a liberdade, que tem a vida. Isso é o que temos de melhor. E é grande demais para ficar em uma única bolha.


(*) Jornalista e publicitário. Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale
| Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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