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Associação livre: falar sem censura

Lucas Nápoli (*)

Como funciona a nossa fala no dia a dia? Bem, primeiramente a gente pensa no que pretende falar, depois ajusta o discurso conforme o contexto em que estamos e às características de nossos interlocutores e, só num terceiro momento, efetivamente falamos. Por conta desse processo em três fases, geralmente o que sai da nossa boca não corresponde exatamente ao que desejávamos dizer. Entre os pensamentos originais e as palavras que efetivamente proferimos se interpõem diversas variáveis que basicamente nos levam a fazer duas grandes perguntas: (1) “Isso que eu estou desejando dizer deve ser dito?” e (2) “Como devo dizer isso?”. Em outras palavras, temos uma espécie de censura interna que controla o que dizemos.

Apesar de todo o mundo saber por experiência própria da existência desse processo, no cotidiano a gente acaba não pensando nele e funcionamos acreditando que aquilo que o outro diz é o que ele efetivamente quer dizer. De fato, se ficássemos o tempo todo colocando sob suspeita as falas de nossos interlocutores, a comunicação seria absolutamente inviável. Assim, vivemos fingindo para nós mesmos e para os outros que o discurso é congruente aos pensamentos daquele que o profere.

O custo desse processo é o afastamento inevitável que experimentamos em relação a nossos pensamentos originais. Como aprendemos desde a infância que não devemos falar tudo o que pensamos e da forma como pensamos, vamos gradualmente nos tornando habilidosos na arte de modular, disfarçar e ocultar nossas intenções originais para adequar nosso discurso aos parâmetros externos. Com o passar do tempo, o mecanismo de censura interna vai se tornando tão potente que ele passa a acontecer de modo extremamente ágil, sendo às vezes imperceptível. O resultado, em muitas pessoas, é que elas passam a sequer notar que não dizem aquilo que efetivamente gostariam de dizer.

Ao inventar a Psicanálise, Sigmund Freud ousou criar um espaço que funciona numa lógica oposta a essa do discurso comum. Ao invés de atender seus pacientes pedindo a eles que simplesmente falassem sobre seus problemas, Freud passou a exortá-los a falarem exatamente aquilo que lhes viesse à cabeça. Em outras palavras, o pai da Psicanálise pedia a seus pacientes que interrompessem o processo natural de censura que utilizavam para falar no dia a dia. É esse discurso espontâneo, que não passa pelas modulações, disfarces e mutilações da fala comum, que Freud denominou de “Einfall”, termo que tradicionalmente é traduzido para o português por “associação livre”.

Creio que essa tradução, embora consagrada no campo psicanalítico, não faz jus ao fenômeno a que ela se refere. Com efeito, ao falar tudo o que lhe vêm à cabeça, o paciente justamente não associa. Associar significa articular um elemento a outro. Ora, é isso o que fazemos no discurso comum, marcado pela censura interna. Associamos uma ideia a outra tendo em vista os parâmetros externos que obedecemos. Quando um paciente faz Einfall numa sessão de Psicanálise, ele não está associando uma palavra a outra, mas simplesmente verbalizando associações que lhe vieram à mente de modo autônomo, espontâneo. Nesse sentido, uma tradução mais precisa poderia ser “ocorrências livres”, pois se trata de convocar o paciente a colocar em palavras os pensamentos que naturalmente lhe ocorrem.

Mas por que Freud passou a utilizar esse procedimento como técnica fundamental do seu método terapêutico? Podemos elencar diversos fatores que influenciaram Freud a empregar a associação livre, mas quero explorar aqui apenas um deles.

Antes de inventar a Psicanálise, Freud já vinha praticando o tratamento de pessoas com problemas emocionais, a princípio utilizando a hipnose como técnica principal. Essa experiência clínica levou o médico vienense a constatar que o quadro patológico de seus pacientes havia se desenvolvido como uma reação a um processo anterior de muita repressão interna vivida pelos pacientes. Freud observou que os sintomas aparentavam ser como válvulas de escape para aspectos presentes na alma de seus pacientes que haviam sido alvos de muita censura por parte deles. Por outro lado, o adoecimento desaparecia justamente quando o paciente conseguia suspender suas censuras durante a hipnose e se permitia tomar consciência daqueles aspectos que haviam sido reprimidos.

Freud notou, portanto, que a raiz das neuroses era censura que o paciente impunha sobre si mesmo. Ora, trata-se da mesma censura que utilizamos para modular nosso discurso no dia a dia. Os parâmetros que nos servem de baliza na hora de escolher o que e como falaremos são os mesmos que adotamos para separar que aspectos do nosso ser queremos enxergar e quais queremos reprimir.

Se o que promove a cura é exatamente o resgate daquilo que foi barrado pela censura, então é preciso que, no tratamento, o paciente se esforce para evitar a aplicação da censura à sua própria fala. Dessa forma, o resgate dos aspectos reprimidos se torna mais facilitado.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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