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A Pandemia do Coronavírus e a discussão do “fato do príncipe”

Júlia Chein (*)

A Organização Mundial da Saúde (OMS), ao declarar o surto do Coronavírus (COVID-19) como pandemia, instruiu populações do mundo inteiro a tomarem medidas de prevenção ante ao rápido contágio da doença que incluíam, por exemplo, nas relações de trabalho, a limpeza e higienização do ambiente, a promoção regular de limpeza das mãos e a disposição de lenços com álcool em gel em locais de fácil acesso dos trabalhadores.

No Brasil, foi sancionada a Lei nº 13.979/2020 que trouxe medidas para prevenção e enfrentamento da saúde pública de ordem internacional em relação ao COVID-19, além de “isolamento” e “quarentena”, que preveem as restrições de atividades, separação de pessoas, meios de transporte, mercadorias, dentre outras medidas que poderão ser utilizadas pelo poder público.

Paralelamente a isso, governadores de vários estados e prefeitos de várias cidades brasileiras emitiram decretos, por ocasião da gravidade declarada da doença, reconhecendo o estado de calamidade pública e dispondo sobre medidas emergenciais de restriçãodo acesso a bens públicos e privados, como, por exemplo, a abertura de comércio como bares, restaurantes, cinemas, salões de beleza, além de parques e clubes para evitar aglomerações e maior disseminação do contágio.

As medidas, como disposto, são advindas das recomendações mundialmente veiculadas para conter o avanço da pandemia,uma vez que, como ainda não há vacinas ou antídotos, pode levar à morte.

Entretanto,as medidas tomadas pelos governadores e prefeitos, ainda que sob o rogo do princípio da supremacia do interesse público sobre oprivado, teria o condão de gerar consequências para os próprios entes federados?

A dúvida veio à tona após a entrevista dada pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro que, em letras miúdas, disse que diante do ato declarado pelos governantes de cada estado ou cidade, a responsabilização pelos encargos trabalhistas seria suportada pelos próprioscofres públicos estatais, citando artigo da CLT.

O artigo em questão tratado é o 486 da CLT que assevera que no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. Contudo, a análise deve ser feita de forma pontual e observando o cenário atual enfrentado.

Isto porque, o artigo mencionado trata do chamado “fato do príncipe” que, simplificadamente, é tratado pela doutrina como o ato emanado pela administração pública que impossibilita temporária ou definitivamente a realização da atividade empresária, gerando desequilíbrio econômico e consequentemente extinção do contrato de trabalho.

Contudo, teria o poder público outra alternativa para evitar a disseminação do Coronavírus, diante do notificado como formas de contenção?

Neste caso, a análise parte de questões mais profundas e o embate de dois bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal, como o direito à vida e o direito à livre iniciativa.

A jurisprudência retrata poucos julgados a respeito da aplicabilidade do “fato do príncipe” nas relações trabalhistas, sendo certo, entretanto, que a avaliação partirá do nexo causal entre a conduta e o comprovado dano e, ainda, se a referida conduta do poder público foi exagerada ante os fatos vivenciados pela população mundial de caráter claramente excepcional.

Muitos juristas majoritariamente entendem que os atos dos governantes partiram de diretrizes da OMS, não se tratando de questões pontuais e casos de exagero ou abusos advindos do poder público e, portanto, o “fato do príncipe” não seria aplicado no atual período de enfrentamento de doença pandêmica e contagiosa.

Por outro lado, há quem defenda que o desequilíbrio econômico trazido pela atitude tomada pelo poder público,enseja a sua consequente responsabilização pelos prejuízos experimentados pelo empresário. Ou seja, a análise, frisa-se, irá partir da interpretaçãoda conduta dos governantes,da extensão do dano causado e, sobretudo,do cenário atual que causou a postura adotada pela administração pública, de modo que caberá ao poder judiciário a decisão quanto à responsabilização do prejuízo e, não só isso, se esse prejuízo se sobrepõe ao risco que doença traria à saúde e à vida do trabalhador.

Para melhor esclarecimento quanto a responsabilização estatal nesse caso, restando configurado ato originário do “fato do príncipe”, caberá ao poder público arcar com o FGTS rescisório na proporção de 20%, havendo discussões acerca do ônus quanto ao aviso prévio do trabalhador. Quanto às demais verbas, estas são devidas pelo empregador, já que é detentor do risco da atividade, nos moldes do art. 2º da CLT.

Assim, a discussão ainda será grande diante das incertezas trazidas pela pandemia, tanto em relação ao impacto econômico financeiro advindo, como nas relações trabalhistas, de consumo e, ainda, nas próprias relações tributárias com o fisco, cabendo, ainda, muitos estudos sobre a excepcionalidade vivenciada, atentos na direção interpretativa por parte de juízes e doutrinadores ante ao cenário, até o momento, nunca experimentado pelo atual ordenamento jurídico brasileiro e a decretação da exceção relativa ao estado de calamidade pública.


(*) Júlia Chein – Advogada da área Trabalhista do VM&S Advogados. Pós-graduada em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ); Graduada em Direito pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC).

E-mail: julia.chein@vmsadvogados.com.br

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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